domingo, 3 de novembro de 2013

Bandido bom é bandido que sabe quanto vale

“Bandido bom é bandido morto.” Paulo proferiu o aclamado bordão dos defensores dos cidadãos de bem e da segurança pública (por pública entende-se a segurança dele). Paulo está no segundo período de um dos cursos que sempre sonhou em fazer, eram vários, claro! Estudou em uma das melhores escolas privadas da cidade, paga com o trabalho árduo dos pais. Em seu quarto, abre o facebook e compartilha o link com o assaltante baleado por um policial ao tentar roubar uma moto e reafirma, agora por escrito e em caixa alta “BANDIDO BOM É BANDIDO MORTO!” e em seguida parabeniza o policial pela ação heroica. Paulo guarda um enorme apreço pela farda e pela arma. O que seria de nós sem eles? Uma pena o policial não ter matado o assaltante, bandido bom é bandido morto! Quem ficou com peninha que leve um bandido pra casa. Ele violou a propriedade privada, deveria ter morrido sim! A vida dele não vale aquela moto. E acrescentou:
“A vida do bandido não vale um real”
A violação de direitos não o incomoda tanto assim. Paulo não liga muito para as vidas violadas do outro lado do mundo, ali mesmo na favela que ele vê da sua janela do décimo primeiro andar.
Naquela favela cresceu e vive Pedro. Pedro Júnior, o pai também é Pedro. Pedro pedreiro penseiro esperando o sol, esperando o trem, esperando aumento desde o ano passado para o mês que vem. E como aumento algum veio, Pedro filho precisa continuar estudando naquela escola onde faltam cadeiras e a professora de Português ensina também História e Geografia e onde não se vê um professor de Matemática há meses. Mas tudo bem, ele sabe, tem que se virar com o pior. Aprendeu desde cedo, vendo o mundo funcionar, que por ser pobre tinha que se contentar com menos. Menos educação, menos saúde, menos conforto, menos espaço, menos respeito. Menos humanidade. É o seu valor. É a parte que lhe cabe. Pedro, além de nascer pobre, nasceu preto. E aprendeu rápido que pobre e preto no Brasil, aí é que valia menos ainda. Pobre, preto e favelado, aprendeu que por o ser já podia ser tratado como bandido, e se era bandido a polícia podia matar. Foi assim com o irmão mais velho, foi assim com dois colegas, foi assim com tantos pais em tantas favelas. É assim.
Pedro cresceu vendo o homem fardado com direito de abusar do poder e da bala, cresceu vendo crime organizado e cresceu vendo o tráfico. E à medida que crescia, sempre que saía da favela via a vida que não lhe cabia e tinha raiva. O pai trabalhava tanto, a mãe também, ele também. E nada daquilo era deles? Nem um pedacinho? Não era, nenhum deles, nem todos juntos valiam uma mísera fração daquilo.
Certa noite a polícia levou o Pedro pai, o Pedro pedreiro penseiro. Pedro filho nunca soube porque e nem para onde.  Dinheiro na casa de Pedro esvaia e a raiva do Pedro expandia e ocupava os três cômodos. Ele começou a fazer o que muitos outros já faziam. Dois amigos já haviam entrado para o crime organizado. Roubavam, vendiam drogas. Muitos outros amigos de Pedro, iguais a ele, preferiram não entrar. Pedro escolheu seguir os dois primeiros. De começo foram pequenos furtos, até então uma carteira e dois telefones celulares. Talvez com a prática passasse a conseguir um pouco mais.
Dessa vez foi uma mochila, dentro dela um notebook. Dois policiais chegaram em uma viatura, Pedro correu e quando Paulo viu no sofá da sala no décimo primeiro andar a notícia de mais um assaltante baleado pela polícia, e dessa vez morto, sorriu e esbravejou orgulhoso “É isso! Bandido bom é bandido morto! É isso que vai acabar com a violência nesse país, matar esses vagabundos”. Matar esses vagabundos, esses outros. O amigo que revendia na faculdade a droga comprada do amigo de Pedro, o tio que sonegava impostos, e ele próprio quando dirigiu bêbado e quase matou uma pessoa atropelada, esses eram outra categoria de infratores. Bandido era o pobre, era o vagabundo. E vagabundo tinha mais é que morrer mesmo.
O primeiro tiro foi na perna. O segundo nas costas, por trás do peito. Pedro levou uma mochila e levou dois tiros, morreu. Justo, dirá Paulo, é isso que bandido vale. Antes de morrer, antes do disparo, antes da mochila, antes de sair de casa;  Antes mesmo de crescer, Pedro já sabia quanto valia sua vida, quanto valia seu futuro. Pedro aprendeu muito bem e muito cedo o seu valor.
Não valia um real.
 É muito triste – e muito chato – ainda ter que bater nessa mesma tecla. É muito triste que tanta gente ainda se recuse a reconhecer que assaltos como a da tentativa de roubo da moto que terminou com o assaltante baleado não são ações individuais isoladas. Gente que se recusa a entender que é um problema sistemático, que se recusa a enxergar as condições e os absurdos que fazem com que essa cena se repita. A questão da segurança pública não pode ser analisada nem da perspectiva da vítima, nem do assaltante. Essa análise pede um distanciamento, pede a compreensão do que ocasiona a realidade que vemos hoje. Não cabe a mim julgar se a atitude do policial foi a melhor possível, eu não entendo nada disso. To falando de quem comemora morte de assaltante. To falando de quem fala de “extermínio de bandido” como solução pra violência.
Se você pensa como o Paulo, fique sabendo que a vida do assaltante vale tanto quanto a minha e a sua. Sua vida vale tanto quanto a do Pedro. E tenha pelo menos a decência de admitir que assaltante levando tiro não resolve em NADA o problema da violência. Apenas satisfaz o tesão da sua cabecinha punitivista, te faz rir porque acaricia seu sadismo conservador. É engraçado pra você ver aquele que você considera menos gente se foder. Pouco te importa o que vai melhorar a segurança pública, a segurança de todos. Você só quer que ele se foda. Você é um merda.
Escrito por Ana. 

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