domingo, 30 de dezembro de 2012

O QUE É TRANSFOBIA?

(Transfobia é inclusive quando a própria sociedade que deveria dar direito à transexual ter identidade e gênero respeitados, tratam-na como homem gay)

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisão unânime, concedeu habeas-corpus a A.R. C.G. e D.R.C.G. para revogar a prisão preventiva de ambos. Os dois, juntamente com o co-réu E.D.L., são acusados de matar, por motivo torpe, a vítima Bruno Felipe Mouraria, ocultando o seu cadáver. No caso, os ministros entenderam faltar fundamentação ao decreto de prisão.

Narra a denúncia que a vítima, homossexual que se travestia de mulher e se apresentava como Luíza, teve relacionamento amoroso com o réu D., não revelando seu gênero biológico. Para vingar-se, em 13 de julho de 2005, D. combinou encontro com a vítima, levando-a para o interior de uma residência onde, em co-autoria com o réu A. e com o co-réu E., passaram a agredi-la com socos, pontapés e um pedaço de madeira, causando sua morte. Após, amarraram o corpo da vítima pelos pés e a ele prenderam uma pedra, jogando-a no mar.

A. e D. foram denunciados pelos crimes de homicídio qualificado (artigo 121, CP) e ocultação de cadáver (artigo 211, CP). O juiz da causa decretou a prisão temporária de ambos por 30 dias, em 25 de julho de 2005. Em 24 de agosto do mesmo ano, foi decretada a prisão preventiva dos acusados. Seja porque se trata de grave crime do homicídio, do qual há nos autos relevantes indicativos de materialidade e de autoria, tratando-se de crime hediondo; seja porque patente a periculosidade dos réus, a impor resguardo à ordem pública; seja, ainda, para garantia da aplicação da lei penal, decreto a prisão preventiva dos acusados, determinou o juiz processante.

A sua defesa impetrou habeas-corpus no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que foi denegado por ter sido considerada bem fundamentada a decisão que indeferiu ao pedido de liberdade provisória dos réus. (...) bem fundamentada a decisão da d. autoridade impetrada que indeferiu o pedido de liberdade provisória aos pacientes, não existindo nenhum constrangimento ilegal decorrente da manutenção da prisão processual, o que desautoriza a concessão do presente writ, decidiu.

No STJ, a defesa dos réus alegou, em síntese, inexistentes os pressupostos da prisão cautelar, pois não estão preenchidos os requisitos do artigo 312 do CPP (garantia da ordem pública ou econômica, a conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal). Além disso, acrescentou que ambos são primários e possuidores de bons antecedentes. Pediram, em liminar e mérito, a concessão do habeas-corpus para que fosse revogada a prisão preventiva com a expedição do alvará de soltura.

Ao decidir, o relator, ministro Paulo Medina, destacou que não vislumbrou, ao analisar ambas as decisões, fundamentos plausíveis a sustentar a segregação provisória. O próprio decisum atacado não traz os motivos justificadores da medida. Calcado em discurso retórico, faz menção, de forma vaga e imprecisa, à presença da materialidade e aos indícios de autoria, à hediondez e à periculosidade abstrata dos pacientes, não demonstrado o periculum libertatis a partir de elementos concretos dos autos, disse.

O ministro ressaltou, ainda, que a decretação da prisão cautelar depende, necessariamente, da existência de elementos concretos de probabilidade do réu empreender fuga, colocar em risco a ordem pública ou a aplicação da lei penal, sem os quais se torna incabível a constrição excepcional.

No caso, não há apontamento judicial da realidade objetiva ensejadora da prisão provisória, vale dizer, os atos ou fatos envolvendo o paciente, supedâneos a amparar o decreto prisional, não foram evidenciados pelo juiz monocrático nem pelo Tribunal a quo. Não são abarcadas, assim, decisões nas quais não esteja demonstrada a necessidade da constrição cautelar. Daí a necessidade de se cassar o decreto prisional dos pacientes, assentado em fundamentação vaga e imprecisa, afirmou.

A respeito da concessão do habeas-corpus, o próprio Ministério Público Federal se posicionou pela revogação do despacho que decretou a prisão preventiva. Estando o despacho que decretou a prisão preventiva absolutamente desfundamentado, visto que não demonstra, com dados concretos, como e por que a liberdade do paciente pode colocar em risco a ordem pública, limitando-se a registrar que se trata de crime grave, de natureza hedionda, sendo patente a periculosidade dos réus, a impor resguardo à ordem pública, resta configurado o constrangimento ilegal à sua liberdade de locomoção, afirmou o parecer.

Fonte: http://www.jurisway.org.br/v2/noticia.asp?idnoticia=6051

Por um feminismo que pense na condição da mulher trans


Quando o feminismo incitou as mulheres a lutarem pela igualdade de gêneros, pela destruição da opressão que transforma a mulher em um ser inferior ao homem e que, nessa condição, deveria se recolher ao seu karma quase cósmico de alguém que deve obediência e resignação à superioridade masculina em diversos aspectos – as mulheres trans* não conseguiram entender, já que até hoje são vistas como inferiores inclusive às próprias mulheres (ou àquilo que a sociedade petrificou na significação do que é ser mulher). Inferiores ao humano e, portanto, tratadas como seres a quem ninguém é obrigado a ouvir as reinvindicações.
Infelizmente, ainda hoje em dia, parece difícil acabar com a manipulação muitas vezes quase criminosa de um determinismo biológico que concretizou fatos que parecem rasos diante de tantas e tão diversas ciências que estudam a sexualidade humana. Aquela meia-verdade, que grita pela boca do cientificismo, que mulheres são seres com vagina, útero e cromossomos XX. Quanto às mulheres trans*? Essas são imitações mal feitas, essas são produtos inacabados de um engodo, uma enganação. Quando o feminismo eclodiu como um sistema de ideologias que visam propagar a igualdade entre mulheres e homens, muitas das trans* não puderam compartilhar da luta, pois estavam tentando demonstrar ao mundo que eram seres humanos, algo ainda anterior a possuir ou não possuir um gênero. E, seres humanos genuínos, donos de verdades diversas, e antes de tudo, agredidas diariamente, a todo instante, por toda uma sociedade que não vê qualquer humanidade diante de uma mulher trans*.
Nesse ano de 2012, dados parciais do GGB (Grupo Gay da Bahia) nos dão conta que 126 mulheres trans* foram assassinadas em todo o país. Debruçando-se sobre esses números e o que eles representam, faz-se importante exibir um cenário em que as mulheres trans* não só são agredidas e mortas, mas também desrespeitadas inclusive pela mídia e sociedade após os homicídios e, antes deles, o que inclusive é explicação para a causa dos mesmos. Importante aqui notar que o governo brasileiro não possui qualquer censo da transexualidade no país, que nos dêem com precisão dados de quantas mulheres trans* possuímos, ou mesmo dos crimes de motivos transfóbicos – a transfobia não é tipificação criminal para o estado brasileiro (talvez, por ter nenhuma importância perante as autoridades).
Comece pelo fato de que não são vistas como mulheres, ante isso, homens travestidos – grande maioria das vezes, gays com roupas de mulher. O mesmo preconceito que em vida matou-as diariamente, que nega a identidade feminina que elas assumem perante a sociedade e nega-lhes o direito básico e primitivo de possuirem um nome que atenda à uma dignidade atacada, um nome que não seja sinônimo de humilhação, como muitas o são diariamente por meio do comportamento sistemático da sociedade que prefere ver essas mulheres como quase cidadãs, quase homens, quase mulheres, quase gente.
Uma sociedade que não se importa em espezinhá-las e destruir a pouca ou rara auto-estima que podem possuir, no mais profundo de qualquer ser humano; e faz questão de ignorar o nome social (aquele que elas escolheram por trazer respeito e significação para o gênero que exercem). A prova disso é o que a grande mídia nos traz ao exibir as mulheres trans* em seus noticiários, há uma necessidade quase que embasada em um fanatismo cego ao dar nomes pelos quais essas mulheres foram registradas quando nasceram – como se isso fosse necessário para entendermos e compreendermos quaisquer que fossem os dados apresentados. Uma necessidade de demonstrar para a sociedade que se está diante de uma fraude, é isso, para essa mídia, ser mulher trans* é tentar fraudar um sistema sexual aprisionado e que aprisiona. Não tente lutar contra ele, pois exibirão a todos, quase que como castigo, que você nasceu e foi designada como homem, recebeu um registro de gênero masculino e ostenta em seu RG um nome que na maioria dos casos só lhe causa constrangimento, pouco importando para o anunciante o sofrimento que isso venha causar.
É quase uma celebração por um crime, tal e qual faziam e fazem em diversas sociedades, esquartejando e expondo em praça pública os restos mortais dos criminosos, a fim de que sirva de lição e medo para o restante da sociedade. É isso que fazem com as mulheres trans*, expõem aquilo que de mais precioso possuem, que é a própria identidade e significação, para em seguida demonstrar para todos: “Vejam, apesar dela se dizer mulher, é homem. Tem nome de homem, foi registrada como homem, mas continuem a ouvir o que essa figura exótica tem a dizer, para que aprendam o que acontecerá caso você ou alguém que você conheça, resolva lutar contra o que silenciosamente escreveram em uma lei não escrita: a que impede que seres humanos sejam respeitados por serem trans*”.
Quando o feminismo passou a lutar para que as mulheres saíssem de casa e fossem assumir postos de trabalho que só a um homem era possível, muitos viram nisso a destruição da unidade familiar, que até então incumbia às mulheres apenas e tão somente as funções domésticas – funções essas que a um homem era vedado, isso definitivamente só podia ser feito por mulheres. Hoje em dia, esse feminismo luta pela equiparação salarial entre mulheres e homens ocupando o mesmo cargo – é importante nesse caso frisar o exercício da presidência da república brasileira por uma mulher. Isso seria um disparate até poucas décadas atrás, loucura das maiores!
Nada disso as mulheres trans* conseguiram saborear, ainda são expulsas das escolas pelas grandes e microagressões diárias de alunos e professores que fazem questão de gritar que não são mulheres. Rejeitadas do mercado de trabalho, já que foram desde logo associadas ao roubo, ao crime. Raras mulheres trans* conseguiram destruir os grilhões que sempre as prenderam e as transformaram em subproduto da espécie humana e, nesse ponto também é importante salientar conquistas dignas de uma presidência da república. Luma Andrade, travesti nordestina que conseguiu um diploma de doutorado no ano de 2012 – sua história de vida é um caso exemplar de quem nunca foi vista como mulher, de quem sofreu todos os reveses da negação de uma humanidade que chegou tardiamente aos olhos da sociedade, que resolve só privilegiar como gente aquelas que não se prostituíram ou largaram a prostituição. Palmas para Luma Andrade, que sozinha mostrou-nos ser um exército, e que sozinha simboliza milhares de mulheres trans* por todo o país que poderiam (e podem) também chegar lá. Palmas a todas as mulheres trans* que não saíram no noticiário, pois não conseguiram um diploma de mestrado ou doutorado ou por quê não foram acusadas de qualquer crime, mas que mesmo assim trabalham dignamente e superam diariamente agressões vindas de todos os lados daqueles que não as reconhecem como mulheres (frisando nesse ponto o fato de que a mídia diariamente prefere é mostrar que ser trans* é ser criminosa, nos diversos documentários e noticiários que demonstram o envolvimento da marginalidade trans* com os crimes – raramente se dá notícia de algo que fuja a isso).
Mas, antes que alguém saia em defesa da Luma com o intuito de instalar culpa nas demais trans* que se prostituem, é preciso lembrar a esses moralistas que ser prostituta no Brasil não é crime – ante isso, é um trabalho legítimo e que se existente, é por conta da lei da oferta e procura. Também é importante notar, nesse ponto, o fato de que muitos daqueles que resolvem crucificar as trans* que se prostituem são os que fazem uso desse serviço às escondidas, no anonimato que os salva para mais tarde condenarem-nas como “esses travecos que não se dão o respeito”. Não, não são elas que não se dão ao respeito, é o restante da sociedade que decidiu que não as respeitaria – elas nunca souberam o que é respeito, pois nunca foram respeitadas, sempre vistas como “o traveco da esquina, do bairro, da escola”. No que tange a questão da prostituição, ao patriarcado que domina e permeia as questões morais da sociedade brasileira, difundiu-se entre homens e mulheres, que se um homem quiser fazer usufruto do serviço de uma prostituta, não pode ser com uma mulher trans* – com as demais, tudo bem, será até elogiado pelos amigos, mas com mulheres trans* é algo inaceitável, criminoso, diriam muitos. Afinal de contas, para essa sociedade que ignora o que é gênero, papel e identidade de gênero e não sabe diferenciar isso de orientação sexual , se um homem transar com uma mulher trans*, ele terá se contaminado – por osmose, de certo – com a homossexualidade [ou homossexualismo(sic), diriam os incautos]. Uma homossexualidade ainda mais terrível, já que além dessas criaturas serem gays, ainda ousam querer enganar os pobres rapazes de que são mulheres. Um acinte, de certo!
Partindo desse ponto de vista, não só o feminismo deveria lutar (como já faz) pela liberação sexual das mulheres e pela exigência de que a sociedade respeite as profissionais do sexo como seres humanos plenos de direitos, uma vez que essa mesma sociedade ou não se importa para o comportamento sexual libertino dos homens ou o exige, é também urgente pensar em prostituição feminina também pelo aspecto da discussão de gênero, da hierarquização e oligarquia que colocam mulheres trans* no fim dessa pirâmide que não lhes permite dignidade. É preciso pensarmos nisso, para que não corramos o risco de esquecer que há todos os tipos de mulheres nessa luta.
O embate levantado pelas feministas para que as mulheres retirassem o antolho que as transformavam/transforma em puta caso se dessem ao disparate de exercerem suas vidas sexuais tal e qual bem lhes conveniessem – algo que aos homens já foi facilitado desde que o mundo é mundo, traz notabilidade quando ainda no ano de 2012 vivemos em uma sociedade que mostra a mulher como objeto, bem de consumo, pedaço de carne em um açougue que diz que para ser carne de primeira é preciso se atentar aos padrões de beleza que a mídia machista lapidou em todo e qualquer comercial para homens. Mas também, é preciso salientar aqui que essa é a mesma sociedade que repercute a objetificação, fetichização e hiperssexualização das mulheres trans*, a essas não é dado sequer o “direito” de serem dignas preservando a própria vida sexual, já que são vistas como monumento ao sexo – pensar em transexualidade e travestilidade para a sociedade, de um modo geral, é pensar em genitais e no uso que se faz dos mesmos, nada mais.
Essa maior liberdade sexual proporcionou às mulheres o acesso universal aos anticoncepcionais – estavam enfim libertas de uma verdade mentirosa que sempre lhes disse que ser mulher era ser mãe. Agora, já poderiam inclusive negarem-se um papel que talvez não fosse o que gostariam de exercer.
Infelizmente, as mulheres trans* não acompanharam esse acesso – não, não estamos aqui falando de gravidez , evidente. Estamos falando de algo que talvez grande parte das mulheres (e homens) não saiba do que se trata: a hormonização das mulheres trans*. Muitas, para conseguirem revelar no corpo o que seu íntimo sempre lhe gritou: o fato de que são mulheres, resolvem fazer uso de anticoncepcionais, repositores hormonais femininos e anti-androgênicos (medicações que interrompem a produção de hormônio masculino). Nesse caso, é salutar trazer luz ao fato de que a hormonização das mulheres trans* difere em todos os princípios do uso dessas medicações feitos pelas mulheres não trans* – já que, os efeitos colaterais das drogas foram testadas apenas no corpo das mulheres não trans*. Sem sequer poder recorrer com fidedignidade à bula da medicação, é preciso que recorram a um médico especialista em hormonização de mulheres trans*. Logo, essas mulheres se depararão com um fato corriqueiro no Brasil: raros endocrinologistas estão preparados para isso.
Você sabe aquele seu direito de se atendida por um/uma ginecologista que você confie e que por ele/ela tenha empatia? Pois bem, no caso das mulheres trans*, o médico especialista pode não ser o que ela confia ou sente empatia, mas é o que existe – não há tantos endocrinologistas para mulheres trans* no Brasil, ou melhor: há raros. Também não há tantos médicos no Brasil, em todas as demais áreas, que respeitem as mulheres trans* como mulheres. Grande parte deles irão trata-las como a medicina atual vê as mulheres trans*: seres transtornados, patológicos. E, aqui cabe uma pergunta: se você trabalha, estuda, tem amigos, tem família, tem namorado/namorada, chora, sorri, vibra e se angustia; podemos nesse caso segregá-la como mulher com doença mental? Podemos segregar doentes mentais e não lhes conferir cidadania e respeito? Ou melhor, como a grande maioria dos médicos preferem ver as mulheres trans*: “homens que pensam que são mulheres, por conta da doença mental”.
A patologização da transexualidade, que instaura verdades diplomáticas e universais: toda mulher trans* é uma transtornada mental; é algo que faz com que a vida das mulheres trans* se dificulte em diversos aspectos diretamente ou indiretamente e, essa também deve ser uma luta das feministas, portanto: a luta pela despatologização.
Ainda no que se refere aos cuidados médicos, no Brasil atualmente há apenas quatro hospitais públicos capazes de realizar uma cirurgia de transgenitalização (a grande mídia e o grande público gosta de chamar essa cirurgia de “mudança de sexo”). Há uma precariedade no que diz respeito ao acesso de todas as mulheres trans* a essa cirurgia (e a todas que dizem respeito à feminilização dos seus corpos): nos hospitais existentes, faz-se uma ou duas cirurgias mensais e, dado o volume de mulheres que desejam realiza-la, é indispensável lutar pela universalização e facilidade ao acesso cirúrgico. Também é preciso lembrar que não se trata de cirurgia estética, mesmo quando uma mulher trans* precisa colocar uma prótese de silicone nos seios não estamos falando apenas e tão somente de beleza. Mulheres trans* que precisam da mamoplastia são como mulheres que perderam suas mamas para o câncer – a todos é suficiente lembrar o que é simbólico para uma mulher quando se fala em seios e vagina. Mas, às mulheres trans* brasileiras, só é permitido se colocar dentro de uma fila de milhares ou centenas de outras mulheres e rezar por uma cirurgia que talvez nunca chegará, uma cirurgia que poderia conferir dignidade à vida dessas mulheres.
No que se refere aos crimes praticados contra as mulheres trans*, são um apanágio da imoralidade e indecência daquilo que é o patriarcado, o sexismo, o machismo e a transfobia – ódio contra pessoas trans*. Para aquele que der a mínima importância e se esgueirar sobre as notícias, verá não só a destruição do que é ser mulher trans* pela mídia (dado o desrespeito pelo gênero e identidade das mesmas), como pelas formas horrendas e brutais que se dão os crimes: decapitações, mutilações, estupros seguidos de morte, tiros à queima-roupa, escarificações e empalamentos. Crimes que o público justifica (notando o desalinho com o gênero da vítima) das seguintes formas:
“Mas era um traveco, né?”
“Mas estava envolvido com drogas.”
“Mas foi morto pelo próprio meio que vive.”
“Mas outras pessoas também morrem.”
“Mas olha como ele se vestia e andava.”
(…)
Qualquer desculpa serve, desde que essas pessoas precisem demonstrar que ser uma mulher trans* é a própria motivação para o esquecimento dos crimes. Qualquer desculpa serve se for para fechar os olhos diante da história de vida dessas mulheres, do que as levou para a prostituição, para as drogas, para o encontro com os braços da morte expressiva e fria, que a toda hora as assombra: agredidas tanto pelos civis, quanto pelos policiais. Você pode ser prostituta, mas se for trans* prostituta, isso é crime demais para os que assim se acham no direito de fechar os olhos para mortes de mulheres trans* – veja, ainda que a vítima não seja prostituta, nomeá-las assim resume tudo.
As mulheres trans* também lutam, tantas vezes sozinhas, pela representação dentro dos lugares que muitas mulheres resolveram lhes impedir: os banheiros públicos, por exemplo. Que agressão você estar apertada para ir ao banheiro, com a urina quase escorrendo pelas pernas e ser afrontada por uma mulher dentro do local que te vê como alguém insuficiente para fazer necessidades ali. Uma agressão que, se por um lado clama “segurança” das demais mulheres, impedindo que seres humanos excretem o que todos (homens ou mulheres) o fazem é a mesma que não se importa se uma mulher trans* usar o banheiro masculino, sofrerá estupro ou qualquer tipo de assédio. Parece-nos, nesse ponto, que a segurança da mulher trans* é menos importante, ou, não tem importância nenhuma.
É algo que as mulheres trans* não entenderam, quando as feministas passaram a lutar para que as mulheres deixassem de ocupar o espaço que teoricamente era apenas das mulheres – às mulheres trans*, inclusive os espaços autorizados às demais mulheres, continuam a ser a elas negados.
Se quisermos pensar em um feminismo que dignifique a todas as mulheres, também teremos que debater questões fundamentais para que possamos levar à todas as pessoas, sem distinção, o respeito ao gênero feminino das mulheres trans*. Se quisermos demonstrar que mulheres podem realizar tudo que qualquer homem, também precisamos nos debruçar diante da humanização das mulheres trans*, as quais ainda hoje em dia, não são traduzidas pela sociedade nem como "homem" e nem como mulheres [se quer como seres humanos].

fonte:http://www.transexualidade.com.br/2012/12/29/por-um-feminismo-que-pense-na-condicao-da-mulher-trans/

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Bento XVI e as ameaças contra a humanidade


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Eu pensava que o que o ameaçava o Planeta eram as guerras e a injustiça social, mas o Papa Bento XVI pensa que é o casamento homossexual. Foto: AFP
O papa Bento XVI disse que o casamento homossexual “ameaça o futuro da humanidade”.
Eu pensava que o que o ameaçava eram as guerras (muitas delas étnicas ou religiosas), a fome, a miséria econômica, a desigualdade e as injustiças sociais, a violência, o tráfico de drogas e de armas, a corrupção, o crime organizado, as ditaduras de todo tipo, a supressão das liberdades em diferentes países, os genocídios, a poluição ambiental, a destruição das florestas, as epidemias… Porém o papa, mesmo ciente de todos esses males e consciente de que sua instituição – a Igreja Católica Apostólica Romana – contribuiu com muitos deles ao longo da história ocidental,  disse que a humanidade é ameaçada pelo fato de dois homens ou duas mulheres se amarem e, por isso, decidirem construir um projeto de vida comum e obter o reconhecimento legal dessa união para gozar de direitos já garantidos aos heterossexuais.
O amor e a felicidade como ameaças contra a humanidade: foi o que afirmou Bento XVI.
O amor, uma ameaça?!
Dentre todos os desatinos do papa, este foi o que mais me chocou. Talvez porque sua afirmação estapafúrdia e anacrônica tenha violado diretamente a minha dignidade humana de homossexual assumido e orgulhoso de minha orientação sexual e de minha formação científica (sim, porque a afirmação de Bento XVI parte da crença absurda de que o casamento civil igualitário vai transformar todos os homens e mulheres em homossexuais e vai impedir que todas as mulheres da Terra recorram às técnicas de reprodução artificial).
Ora, o amor, como a fé, é inexplicável:  sente-se ou não. Não há dicionário que possa defini-lo; só o poeta pode dizer alguma coisa a respeito — fogo que arde sem se ver, ferida que dói e não se sente — mas para entendê-lo é preciso sentir tudo aquilo que o papa, os cardeais, os bispos e os padres, pelas regras do trabalho que escolheram desde jovens, são proibidos de sentir – seja por outro homem, seja por uma mulher.
Talvez por isso eles não entendem.
Mas o amor nunca poderia ser uma ameaça para a humanidade; antes, sim, uma salvação para os seus piores males, um antídoto contra os venenos que a intoxicam, uma vacina contra as doenças que a afligem. O papa está errado de cabo a rabo. Ele não entendeu nada mesmo.
Contudo, mesmo não entendendo, ele deveria ter um pouco de responsabilidade. Suas palavras têm poder, influência, entram na cabeça e no coração de milhões de pessoas no mundo inteiro. Ele poderia usá-las para fazer o bem. Em vez de dedicar tanto tempo e esforço a injuriar os homossexuais — eu confesso que não consigo entender o porquê dessa obsessão que ele tem com a gente — o papa poderia se colocar na luta contra os verdadeiros males que ameaçam, sim, a humanidade. Esses que matam milhões, que arruínam vidas, que condenam povos inteiros.
Bento XVI não pode continuar difundindo o ódio e o preconceito contra os gays. Ele não pode dizer que nós, só por amarmos, só por reclamarmos que o nosso amor seja respeitado e reconhecido, somos “uma ameaça”. Aliás, porque esse tipo de frases têm uma história. “Os judeus são a nossa desgraça!” (“Die Juden sind unser Unglück!”), disse o historiador Heinrich von Treitschke, e essa desgraçada expressão, publicada na revista alemã Der Sturmer e logo usada como lema pelos nazistas, deu no que deu. Nós, homossexuais, também sabemos disso: o nosso destino na Alemanha nazista, onde Bento XVI passou sua juventude, era o mesmo dos judeus, só que em vez da estrela de Davi, o que nos identificava noscampos de concentração era o triângulo rosa.
A tragédia do nazismo deveria ter servido para aprender que o outro, o diferente, não é uma ameaça, nem uma desgraça, nem o inimigo. E nós, homossexuais, não ameaçamos ninguém. O nosso amor é tão belo e saudável como o de qualquer um. E merecemos o mesmo respeito e os mesmos direitos que qualquer um.
Da mesma maneira que acontece agora com o “casamento gay”, o casamento entre negros e brancos — chamado, na época, “casamento inter-racial” — já foi considerado “antinatural e contrário à lei de Deus” e uma ameaça contra a civilização. Numa sentença de 1966, um tribunal de Virgínia que convalidou sua proibição usou estas palavras: “Deus todo-poderoso criou as raças branca, negra, amarela, malaia e vermelha e as colocou em continentes separados. O fato de Ele tê-las separado demonstra que Ele não tinha a intenção de que as raças se misturassem”. O casamento entre alemães “da raça ária” e judeus também foi proibido por Hitler. Até os evangélicos tiveram o direito ao casamento negado em muitos países durante muito tempo, porque eram, também, uma ameaça para a Igreja católica. Parece que alguns pastores não se lembram, mas foi assim.
Na Argentina, que em 2010 aprovou o casamento igualitário, a primeira grande reforma ao Código Civil, no século XIX, foi impulsionada pela demanda dos protestantes, que reclamavam o direito a se casar. Vários casais não católicos se apresentaram na Justiça, como agora fazem os homossexuais. Quando o país aprovou a lei de criação do Registro Civil e, depois, o matrimônio civil, em 1888, houve graves enfrentamentos entre o governo argentino e a Igreja Católica, que incluíram a quebra das relações diplomáticas com o Vaticano. No Senado, um dos opositores ao matrimônio civil disse que, a partir de sua aprovação, perdida a “santidade” do matrimônio, a família deixaria de existir. A lei foi chamada de “obra-mestra da sabedoria satânica” por monsenhor Mamerto Esquiú, quem disse sobre os governantes argentinos da época que “amamentam-se dos peitos da grande prostituta, a Revolução Francesa”. Todas a predições apocalípticas que foram feitas contra a lei de matrimônio civil, no entanto, não se cumpriram. Anunciaram, garantiram que o mundo ia se acabar…  mas o mundo não se acabou.
Passou-se mais de um século, mas as discussões são as mesmas. Os argumentos são os mesmos. E o papa Bento XVI continua sem entender. Não entende, tampouco, que o casamento civil e o casamento religioso são duas instituições diferentes. O casamento civil está regulamentado pelo Código Civil, que pode ser modificado pelo Congresso, já o casamento religioso depende das leis de cada igreja: por exemplo, o casamento católico é diferente do casamento judeu.
O casamento religioso é feito na igreja, templo, mesquita ou terreiro; o civil, no cartório. Para celebrar o casamento religioso na Igreja católica, os noivos devem ser batizados ou fazer um juramento supletório do batismo e devem realizar um curso prévio na igreja – o que não é necessário para o casamento civil, que pode ser celebrado por pessoas de qualquer religião ou por ateus. O casamento religioso, na maioria das igrejas cristãs, é indissolúvel – já o civil admite o divórcio.
Em conseqüência, uma pessoa pode se casar na Igreja apenas uma vez na vida, mas pode casar quantas vezes quiser no cartório, desde que seja divorciada. O casamento religioso, para que produza efeitos jurídicos, deve ser registrado no cartório – os efeitos jurídicos do casamento civil são imediatos. E essas são apenas algumas das muitas diferenças que existem entre o casamento civil e o religioso…
O que nós, homossexuais, reclamamos é o direito ao casamento civil. O projeto de emenda constitucional (PEC) que estou impulsionando no Congresso não mexe em nada com casamento religioso, cujos efeitos jurídicos são reconhecidos no art. 226 § 2 da Constituição, que se manterá inalterado. Meu projeto legaliza o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, mas nada diz sobre o casamento religioso. Da mesma maneira que o Estado não deve interferir na liberdade religiosa, as religiões não devem interferir no direito civil. Este último é uma instituição laica, que deve atender por igual as necessidades daqueles e daquelas que acreditam em Deus — em qualquer Deus ou em vários Deuses — e também daqueles e daquelas que não acreditam.
Chegará o dia no qual uma criança irá à biblioteca da escola para procurar, nos livros de história, alguma explicação sobre um fato surpreendente que o professor comentou em sala de aula: “Até o início do século 21, o casamento entre dois homens ou duas mulheres não era permitido”. Para o nosso pequeno cidadão, essa antiga proibição resultará tão absurda como hoje nos resulta a proibição do casamento entre negros e brancos, ou do voto feminino. E se ele descobrir, na biblioteca, que houve um dia em que um papa disse que o casamento gay ameaçava a humanidade, provavelmente sentirá a mesma repulsa que nós sentimos ao lermos a desgraçada frase de von Treitschke.
Bento XVI deveria pensar se ele quer passar à história dessa maneira. Ainda está em tempo.
Tomara que algum dia ele seja capaz de entender e aceitar o amor — qualquer maneira de amor e de amar — e fazer aquilo que Jesus Cristo pregava: “Amarás ao próximo como a ti mesmo”.

Jean Wyllys - Para sua coluna na revista Carta Capital

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Revista Diálogos

Para quem não viu ainda, a última edição da Revista Diálogos trata de temas da Psicologia Jurídica e do debate em relação ao exame criminológico. Vale a leitura.

Marcello Accetta

http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/10/Dialogos8_23outubro.pdf

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Sobre o DSM

Olá a todos,
Postei esse vídeo que fala sobre a história do DSM e suas repercussões por achar interessante para as discussões sobre normatização, periculosidade e sobre os peritos nos tribunais. Vale a pena assistir.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O que acontece quando se denuncia um crime de colarinho branco na midia...



...é cortada do ar...
reporter corajosa 

Postado por Rebecca Dalfior Signorelli

Jean Wyllys e Silas Malafaia se enfrentam ao vivo em Audiência

https://www.youtube.com/watch?v=XQLZOC8XJiU&feature=player_embedded
  http://www.blogdopessoa.com.br/2012/11/jean-wyllys-e-silas-malafaia-se.html

"A Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados promoveu nesta terça-feira (27) uma Audiência Pública para discutir o Projeto de Decreto Legislativo 234/2011 proposto pelo deputado João Campos (PSDB-GO). Apelidado de “projeto da cura gay”, o mesmo tenta sustar partes da Resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que falam sobre a relação do profissional de psicologia em prestar atendimento quanto à orientação sexual de seus pacientes.


O deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) e o Pastor Silas Malafaia trocam farpas durante uma audiência pública que discute uma possível sustação da resolução do Conselho Federal de Psicologia que proíbe psicólogos de promover terapias de cura para a homossexualidade.


Os convidados para a audiência foram: o pastor Silas Malafaia, Humberto Cota Verona, presidente do CFP; Marisa Lobo, psicóloga com especialização em psicologia da sexualidade; e Toni Reis, presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais.


 O clima esquentou diversas vezes, principalmente quando o pastor Silas Malafaia proferia seu ponto de vista. Ativistas gays chegaram a estender uma faixa com o nome do pastor acompanhado de um símbolo nazista. O presidente da Comissão, deputado Mandetta (DEM-MS), encaminhou a denúncia do ocorrido para que haja punição ao desrespeitoso ato nas dependências do Congresso Nacional. “Quem são os intolerantes? Aqueles que reclamam por direitos, devem respeitar os direitos dos outros". disse Malafaia.


Wyllys reiterou que a resolução não proíbe pessoas com problemas psíquicos de procurar um terapeuta e sim que profissionais de psicologia prometam reorientar sexualmente um paciente. “Se o paciente sofre de algo chamado na psicologia de egodistonia, uma dissintonia do ego com o desejo, o fim do sofrimento tem que vir pela egosintonia, colocar o ego em sintonia com o desejo, e não reforçar a egodistonia por meio de terapias e proselitismos religiosos de todo o tipo”, explica".


Postado por Rebecca Dalfior Signorelli

sábado, 1 de dezembro de 2012

A verdade da mentira no júri

O espetáculo do ritual do júri no topo da hierarquia da Justiça Brasileira, no STF, tematizando o caso do Mensalão. As autoridades interpretativas, o respaldo dos autos, a submissão dos fatos jurídicos ao contraditório e a performance argumentativa, com apelo à subjetividade na análise dos fatos. (Postado por Ruan Rocha)




quinta-feira, 29 de novembro de 2012



Ótima Charge!

Dilma e o lombrosionismo do CSI

 Pessoal, vi essa matéria em um blog chamado Cultura do controle. Acredito que a matéria reflete claramente a nossa discussão da última aula, sobre como as teorias de autores como Lombrósio ainda têm reflexo na atualidade!




quarta-feira, 30 de maio de 2012
Dilma e o lombrosionismo do CSI

A recente sanção pela presidenta Dilma da lei que obriga os condenados de crimes violentos a fornecerem seu DNA para futuras investigações criminais, apresenta o mesmo problema do velho lombrosionismo:
1. Como só quem é condenado é o pobre, o banco não vai ser um banco dos “DNAs violentos”, mas um banco de “DNA dos Fudidos-Fedorentos”; 2. E assim sendo,o banco de “dados” terá muito mais DNA de favelados, retardados, não-brancos etc., permitindo, inclusive, a correlação entre crime e raça, a partir de tal amostra viciada (mas que será apresentada como “científica”); 3. Dado a essencialidade de tais informações e os múltiplos desvios que podem sofrer, é inconstitucional que o Estado, com fins preventivos para lá de duvidosos, force o sujeito a ter que as entregar à força (se você não faz o teste do bafômetro para não produzir prova contra si num processo atual, como pode ser obrigado a fornecer DNA para um eventual processo futuro?);4.  em conclusão: É o nosso direito penal do inimigo, uma mistura de dedo trancado na gaveta e sessões noturnas de CSI.

O enderesso do blog é:http://culturadocontrole.blogspot.com.br/

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Porque a centralização da questão racial no ativismo transgênero é a chave da igualdade para todxs nós


Tradução de Viviane V. Gqueer
Desde o primeiro Dia Internacional de Memória Trans [Transgender Day of Remembrance, no inglês] em 1998, as mortes violentas de mulheres trans racializadas[1] infelizmente predominaram neste evento anual dedicado à memória e celebração das vidas daquelas pessoas que são vítimas de assassinatos transfóbicos. Este ano não é diferente, com eventos pelo país [Estados Unidos] sendo organizados para lamentar mulheres trans racializadas recentemente mortas, como Brandy Martell, Coko Williams, Paige Clay and Deoni Jones – todas mulheres negras cujo único ‘crime’ foi a ousadia de abertamente viver.
Em que pesem recentes avanços no movimento transgênero, incluindo-se o precedente estabelecido de se estenderem direitos de proteção ax empregadx a todxs xs membrxs da comunidade, as mortes destas mulheres continuam a evidenciar a dura realidade de injustiça que pessoas trans racializadas enfrentam em face do racismo sistêmico existente. Fazendo-se importante, assim, enfatizar que o objetivo de se erradicar a opressão de gênero, um passo necessário no movimento transgênero, tem falhado em manter pessoas trans racializadas vivas.
 Não preciso mencionar a importância do Dia Internacional de Memória Trans como um ato viável de visibilidade e resistência. Entretanto, não nos é suficiente simplesmente lamentar por estas vítimas – nós devemos trilhar os passos necessários à destruição das barreiras institucionais racistas que perpetuam suas mortes, e não deixar o peso desta responsabilidade sobre as comunidades organizadas a partir do vetor racial-étnico. Ao invés disso, as organizações ativistas transgêneras, predominantemente brancas [observar que o autor se refere ao contexto estadunidense], que sem dúvidas têm maior acesso a recursos – financeiros ou não –, devem começar a considerar as vidas das pessoas mais vulneráveis de nossa comunidade com seriedade, desenvolvendo e garantindo o funcionamento de políticas que partam de uma perspectiva interseccional (transversal) às identidades de mulheres trans racializadas.
 Neste sentido, uma efetiva conscientização das barreiras estruturais históricas que proíbem o avanço econômico para todas pessoas racializadas deve formar a base de nosso ativismo. Não podemos implementar leis e políticas bem-sucedidas sem dar atenção à realidade de que a insegurança econômica vivenciada por mulheres trans racializadas é produto de pobreza cíclica e sistemática. Ao fazermos isso, poderemos então começar a deliberadamente criar programas de emprego que sejam direcionados especificamente a pessoas trans racializadas e ao nosso direito a justiça econômica.
Também devemos chegar à compreensão de que – diferentemente dxs companheirxs brancxs –, conforme pessoas trans racializadas sofremos as pressões do racismo, nós estamos mais suscetíveis a doenças físicas – como alta pressão sanguínea –, e mentais – como depressão, apatia, etc [2]. Torna-se importante, assim, concentrar energias não somente em torno da necessidade de acesso a recursos de saúde ligados a hormônios e cirurgias relacionadas às ‘transições’, mas também em torno de serviços de saúde que sejam culturalmente competentes, financeiramente acessíveis, e que levem em consideração opressões raciais e os quadros clínicos que elas fomentam. Nossa saúde é nossa maior defesa para manter as comunidades trans racializadas vivas e em desenvolvimento.
Ademais, ao se considerar a posição central da questão racial, ativistas transgêneros podem começar a enfrentar as disparidades educationais vivenciadas por jovens trans racializadxs. O medo de assédio não somente devido à inconformidade de gênero, mas também devido à discriminaçao racial, forçou muitxs jovens trans racializadxs a sofrer bullying como consequência esperada do que são, ou a deixar a escola de vez, levando à ampliação da distância em termos de desenvolvimento econômico. Ao criar espaços seguros para jovens trans racializadxs – em especial, garotas –, devemos promover um ambiente que honre e valorize sua raça-etnia tanto quanto sua identidade de gênero.
Enquanto muitas pessoas transgêneras brancas podem celebrar os ganhos recentes do movimento, não podemos esquecer que pessoas transgêneras racializadas têm acesso limitado a estes ganhos. Se a luta pelo reconhecimento equânime de todas as pessoas transgêneras é nosso objetivo, então os passos que assegurem a longevidade das pessoas trans racializadas não podem permanecer secundários em nossa missão.
Celebremos isto neste 20 de novembro.
N.T:
[1]- trans women of color, no inglês. Preferi o termo ‘racializadas’ ao considerar que pode haver leituras problemáticas no termo ‘de cor’, porém admito desconhecer que terminologia seria mais adequada ao contexto brasileiro. Ao utilizar ‘racializadas’, a referência é às não branquitudes, com destaque às negritudes em especial, seguindo a linha do texto original (escrito por uma pessoa negra) e pensando também no contexto brasileiro.
[2]- a utilização de ‘sofremos’ e ‘nós’ é feita em referência ao autor do texto original.
Fonte original:  http://blackademic.com/why-centering-race-in-transgender-advocacy-is-key-to-equality-for-all/
Essa postagem faz parte da Blogagem Coletiva Mulher Negra, na semana que antecede o Dia da Consciência Negra, dia 20/11.

O ritual judiciário no Tribunal do Juri - Caso Eliza Samudio

Gente acho que vale a pena seguir o noticiário sobre esse julgamento pois é a prática das nossas discussões teóricas!

http://g1.globo.com/minas-gerais/julgamento-do-caso-eliza-samudio/noticia/2012/11/juri-sem-cadaver-decide-partir-de-indicios-e-testemunhas-veja-casos.html

Bjs

sábado, 17 de novembro de 2012

Imagens da Prisão - Harun Farocki

Olá pessoal,


Um filme que pode ser bastante interessante para nossas discussões na disciplina é o "Imagens da Prisão" do Harun Farocki. Ele é um cineasta alemão que trabalha especialmente com o gênero documentário, mas também produz vídeo-instalações entre outros. Muitos dos seus filmes, assim como este, são compostos por arquivos de imagens, o que significa que ele pega desde imagens do cinema que tratam do tema até imagens de câmeras de vigilância nas prisões. Em uma edição e montagem extremamente interessantes, ele vai compor uma discussão sobre as prisões e suas práticas disciplinares que vai da Modernidade até os dias de hoje (passado recente), acompanhada por uma narração bastante didática e crítica sobre o tema. Com uma pegada bastante genealógica, acho que esse filme pode contribuir para nossas discussões em sala. Achei uns 2 links aqui que vcs podem baixar o filme. Aqui segue a sinopse do mesmo:

Imagens da prisão (Gefängnisbilder), de Harun Farocki
Alemanha, 2000, vídeo, cor/pb, 60’ |

Ao longo de cem anos de cinema, que imagem foi reservada às prisões? Quais imagens a prisão produziu, através de câmeras de vigilância e vídeos para treinamento dos funcionários? O estabelecimento penal aparece como um laboratório antropológico, onde a morte e a vida são estudadas através do olho da câmera.

Links:
http://arttorrents.blogspot.com.br/2008/05/harun-farocki-gefngnisbilder-aka-prison.html 

http://archive.org/details/prison_images


Aproveito para divulgar também que este artista estará no Brasil nas próximas semanas dando um workshop, paralelo a isso, estará acontecendo uma mostra no MAM de seus filmes (http://mamrio.org.br/cinemateca/) e dia 01/12 haverá uma conferência com ele. Enfim, quem se interessar aqui está o link do evento: http://harunfarockieapoliticadasimagens.wordpress.com/ 


Até. Bjos
Anna Bentes

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Parada gay, cabra e espinafre
Revista Veja - 12/11/2012
J.R. Guzzo
Já deveria ter ficado para trás no Brasil a época em que ser homossexual era um problema. Não é mais o problema que era, com certeza, mas a verdade é que todo o esforço feito há anos para reduzir o homossexualismo a sua verdadeira natureza – uma questão estritamente pessoal – não vem tendo o sucesso esperado. Na vida política, e só para ficar num caso recente, a rejeição ao homossexualismo pela maioria do eleitorado continua sendo considerada um valor decisivo nas campanhas eleitorais. Ainda agora, na eleição municipal de São Paulo, houve muito ruído em tomo do infeliz “kit gay” que o Ministério da Educação inventou e logo desinventou, tempos atrás, para sugerir aos estudantes que a atração afetiva por pessoas do mesmo sexo é a coisa mais natural do mundo. Não deu certo, no caso, porque o ex-ministro Fernando Haddad, o homem associado ao “kit”, acabou ganhando – assim como não tinha dado certo na eleição anterior, quando a candidata Marta Suplicy (curiosamente, uma das campeãs da “causa gay” no país) fez insinuações agressivas quanto à masculinidade do seu adversário Gilberto Kassab e foi derrotada por ele. Mas aí é que está: apesar de sua aparente ineficácia como caça-votos, dizer que alguém é gay, ou apenas pró-gay, ainda é uma “acusação”. Pode equivaler a um insulto grave – e provocar uma denúncia por injúria, crime previsto no artigo 140 do Código Penal Brasileiro. Nos cultos religiosos, o homossexualismo continua sendo denunciado como infração gravíssima. Para a maioria das famílias brasileiras, ter filhos ou filhas gay é um desastre – não do tamanho que já foi, mas um drama do mesmo jeito.

Por que o empenho para eliminar a antipatia social em torno do homossexualismo rateia tanto assim? O mais provável é que esteja sendo aplicada aqui a Lei das Consequências Indesejadas, segundo a qual ações feitas em busca de um determinado objetivo podem produzir resultados que ninguém queria obter, nem imaginava que pudessem ser obtidos. É a velha história do Projeto Apollo. Foi feito para levar o homem à Lua; acabou levando à descoberta da frigideira Tefal. A Lei das Consequências Indesejadas pode ser do bem ou do mal. É do bem quando os tais resultados que ninguém esperava são coisas boas, como aconteceu no Projeto Apollo: o objetivo de colocar o homem na Lua foi alcançado – e ainda rendeu uma bela frigideira, além de conduzir a um monte de outras invenções provavelmente mais úteis que a própria viagem até lá. É do mal quando os efeitos não previstos são o contrário daquilo que se pretendia obter. No caso das atuais cruzadas em favor do estilo de vida gay, parece estar acontecendo mais o mal do que o bem. Em vez de gerar a paz, todo esse movimento ajuda a manter viva a animosidade; divide, quando deveria unir. O kit gay, por exemplo, pretendia ser um convite à harmonia – mas acabou ficando com toda a cara de ser um incentivo ao homossexualismo, e só gerou reprovação. O fato é que, de tanto insistirem que os homossexuais devem ser tratados como uma categoria diferente de cidadãos, merecedora de mais e mais direitos, ou como uma espécie ameaçada, a ser protegida por uma coleção cada vez maior de leis, os patronos da causa gay tropeçam frequentemente na lógica – e se afastam, com isso, do seu objetivo central.

O primeiro problema sério quando se fala em “comunidade gay” é que a “comunidade gay” não existe – e também não existem, em consequência, o “movimento gay” ou suas “lideranças”. Como o restante da humanidade, os homossexuais, antes de qualquer outra coisa, são indivíduos. Tem opiniões, valores e personalidades diferentes. Adotam posições opostas em política, religião ou questões éticas. Votam em candidatos que se opõem. Podem ser a favor ou contra a pena de morte, as pesquisas com células-tronco ou a legalização do suicídio assistido. Aprovam ou desaprovam greves, o voto obrigatório ou o novo Código Florestal – e por aí se vai. Então por que, sendo tão distintos entre si próprios, deveriam ser tratados como um bloco só? Na verdade, a única coisa que têm em comum são suas preferências sexuais – mas isso não é suficiente para transformá-los num conjunto isolado na sociedade, da mesma forma como não vem ao caso falar em “comunidade heterossexual” para agrupar os indivíduos que preferem se unir a pessoas do sexo oposto. A tendência a olharem para si mesmos como uma classe à parte, na verdade, vai na direção exatamente contrária à sua principal aspiração – a de serem cidadãos idênticos a todos os demais.

Outra tentativa de considerar os gays como um grupo de pessoas especiais é a postura de seus porta-vozes quanto ao problema da violência, imaginam-se mais vitimados pelo crime do que o resto da população; já se ouviu falar em “holocausto” para descrever a sua situação. Pelos últimos números disponíveis, entre 250 e 300 homossexuais foram assassinados em 2010 no Brasil. Mas, num país onde se cometem 50000 homicídios por ano, parece claro que o problema não é a violência contra os gays; é a violência contra todos. Os homossexuais são vítimas de arrastões em prédios de apartamentos, sofrem sequestros-relâmpago, são assaltados nas ruas e podem ser mortos com um tiro na cabeça se fizerem o gesto errado na hora do assalto – exatamente como ocorre a cada dia com os heterossexuais; o drama real, para todos, está no fato de viverem no Brasil. E as agressões gratuitas praticadas contra gays? Não há o menor sinal de que a imensa maioria da população aprove, e muito menos cometa, esses crimes; são fruto exclusivo da ação de delinquentes, não da sociedade brasileira.

Não há proveito algum para os homossexuais, igualmente, na facilidade cada vez maior com que se utiliza a palavra “homofobia”; em vez de significar apenas a raiva maligna diante do homossexualismo, como deveria, passou a designar com frequência tudo o que não agrada a entidades ou militantes da “causa gay”. Ainda no mês de junho, na última Parada Gay de São Paulo, os organizadores disseram que “4 milhões” de pessoas tinham participado da marcha – já o instituto de pesquisas Datafolha, utilizando técnicas específicas para esse tipo de medição, apurou que o comparecimento real foi de 270000 manifestantes, e que apenas 65000 fizeram o percurso do começo ao fim. A Folha de S.Paulo, que publicou a informação, foi chamada de “homofóbica”. Alegou-se que o número verdadeiro não poderia ter sido divulgado, para não “estimular o preconceito” - mas com isso só se estimula a mentira. Qualquer artigo na imprensa que critique o homossexualismo é considerado “homofóbico”; insiste-se que sua publicação não deve ser protegida pela liberdade de expressão, pois “pregar o ódio é crime”. Mas se alguém diz que não gosta de gays, ou algo parecido, não está praticando crime algum – a lei, afinal, não obriga nenhum cidadão a gostar de homossexuais, ou de espinafre, ou de seja lá o que for. Na verdade, não obriga ninguém a gostar de ninguém; apenas exige que todos respeitem os direitos de todos.

Há mais prejuízo que lucro, também, nas campanhas contra preconceitos imaginários e por direitos duvidosos. Homossexuais se consideram discriminados, por exemplo, por não poder doar sangue. Mas a doação de sangue não é um direito ilimitado – também são proibidas de doar pessoas com mais de 65 anos ou que tenham uma história clínica de diabetes, hepatite ou cardiopatias. O mesmo acontece em relação ao casamento, um direito que tem limites muito claros. O primeiro deles é que o casamento, por lei, é a união entre um homem e uma mulher; não pode ser outra coisa. Pessoas do mesmo sexo podem viver livremente como casais, pelo tempo e nas condições que quiserem. Podem apresentar-se na sociedade como casados, celebrar bodas em público e manter uma vida matrimonial. Mas a sua ligação não é um casamento – não gera filhos, nem uma família, nem laços de parentesco. Há outros limites, bem óbvios. Um homem também não pode se casar com uma cabra, por exemplo; pode até ter uma relação estável com ela, mas não pode se casar. Não pode se casar com a própria mãe, ou com uma irmã, filha, ou neta, e vice-versa. Não poder se casar com uma menor de 16 anos sem autorização dos pais, e se fizer sexo com uma menor de 14 anos estará cometendo um crime. Ninguém, nem os gays, acha que qualquer proibição dessas é um preconceito. Que discriminação haveria contra eles, então, se o casamento tem restrições para todos? Argumenta-se que o casamento gay serviria para garantir direitos de herança – mas não parece claro como poderiam ser criadas garantias que já existem. Homossexuais podem perfeitamente doar em testamento 50% dos seus bens a quem quiserem. Têm de respeitar a “legítima”, que assegura a outra metade aos herdeiros naturais – mas essa obrigação é exatamente a mesma para qualquer cidadão brasileiro. Se não tiverem herdeiros protegidos pela “legítima”, poderão doar livremente 100% de seu patrimônio – ao parceiro, à Santa Casa de Misericórdia ou à Igreja do Evangelho Quadrangular. E daí?

A mais nociva de todas essas exigências, porém, é o esforço para transformar a “homofobia” em crime, conforme se discute atualmente no Congresso. Não há um único delito contra homossexuais que já não seja punido pela legislação penal existente hoje no Brasil. Como a invenção de um novo crime poderia aumentar a segurança dos gays, num país onde 90% dos homicídios nem sequer chegam a ser julgados? A “criminalização da homofobia” é uma postura primitiva do ponto de vista jurídico, aleijada na lógica e impossível de ser executada na prática. Um crime, antes de mais nada, tem de ser “tipificado” – ou seja, tem de ser descrito de forma absolutamente clara. Não existe “mais ou menos” no direito penal; ou se diz precisamente o que é um crime, ou não há crime. O artigo 121 do Código Penal, para citar um caso clássico, diz o que é um homicídio: “Matar alguém”. Como seria possível fazer algo parecido com a homofobia? Os principais defensores da “criminalização” já admitiram, por sinal, que pregar contra o homossexualismo nas igrejas não seria crime, para não baterem de frente com o princípio da liberdade religiosa. Dizem, apenas, que o delito estaria na promoção do “ódio”. Mas o que seria essa “promoção”? E como descrever em lei, claramente, um sentimento como o ódio?

Os gays já percorreram um imenso caminho para se libertar da selvageria com que foram tratados durante séculos e obter, enfim, os mesmos direitos dos demais cidadãos. Na iluminadíssima Inglaterra de 1895, o escritor Oscar Wilde purgou dois anos de trabalhos forçados por ser homossexual; sua vida e sua carreira foram destruídas. Na França de 1963, o cantor e compositor Charles Trenet foi condenado a um ano de prisão, pelo mesmo motivo. Nada lhe valeu ser um dos maiores nomes da música popular francesa, autor de mais de 1000 canções, muitas delas obras imortais como Douce France – uma espécie de segundo hino nacional de seu país. Wilde, Trenet e tantos outros foram homens de sorte – antes, na Europa do Renascimento, da cultura e da civilização, homossexuais iam direto para as fogueiras da Santa Madre Igreja. Essas barbaridades não foram eliminadas com paradas gay ou projetos de lei contra a homofobia, e sim pelo avanço natural das sociedades no caminho da liberdade. É por conta desse progresso que os homossexuais não precisam mais levar uma vida de terror, escondendo sua identidade para conseguir trabalho, prover o seu sustento e escapar às formas mais brutais de chantagem, discriminação e agressão. É por isso que se tornou possível aos gays, no Brasil e no mundo de hoje, realizar o que para muitos é a maior e mais legítima ambição: a de serem julgados por seus méritos individuais, seja qual for a atividade que exerçam, e não por suas opções em matéria de sexo.

Perder o essencial de vista, e iludir-se com o secundário, raramente é uma boa ideia.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012


A sorte do mendigo branco num país que vira a cara para os mendigos negros

por  em 17 de outubro de 2012 ·




Uma história em que pobreza, padrão eurocêntrico de beleza e cultura racista se chocam vem movimentando a internet. Um mendigo fotografado em Curitiba está sendo assunto em todo o Brasil, por ser um branco de olhos azuis “mas” ter sido castigado pela pobreza mendicante. Quando sabemos dessa novidade e a comparamos com a vida de milhares de outros mendigos pelo Brasil, percebemos o quanto a cultura brasileira ainda é muito impregnada de racismo.
O mendigo branco, cujo nome ainda não foi revelado, vive nas ruas de Curitiba e posou para a foto desejando “ser colocado no rádio” para ficar famoso. A fotografia foi posta no Facebook e agora campeia pelo Brasil inteiro, chamando atenção de mulheres e homens. Ora é considerado “lindo de morrer”, com muitas mulheres querendo namorá-lo e abrigá-lo encantadas com a beleza dele; ora vem sendo candidato às passarelas da moda, como o modelo “dos sonhos” das grifes; ora tem sua mendicância posta em dúvida principalmente por ser um branco de olhos azuis, parecido demais com um europeu para ter sua pobreza reconhecida. As opiniões convergem em sua maioria a um ponto: ele é “lindo” demais para continuar mendigo.
E enquanto isso, no mesmo Brasil, inclusive na mesma Curitiba, milhares de negros e pardos padecem de miséria igual ou pior, mas por sua vez permanecem tratados como rejeitos da sociedade, como seres dignos de nada mais do que pena ou virada de rostos. Muitos ainda clamam pela mídia, por um pouco de atenção e humanitarismo, e tudo o que conseguem são poucos minutos na TV ou no rádio, algumas doações e, com sorte, uma assistência de alguma ONG de assistência social ou do órgão oficial de serviço social da prefeitura. Mas praticamente nunca são abraçados pelo padrão cultural de beleza dominante no país, tornados celebridades instantâneas em função de sua aparência física e alçados a modelos “sarados” e adorados.
É aí que começamos a pensar: se fosse um negro de fortes traços africanos ou um mulato, seria prontamente rejeitado em sua demanda de “ser colocado no rádio” ou receber ajuda humanitária, empregatícia e/ou habitacional de algum político ou empresa. Não chamaria a atenção de virtualmente ninguém na internet fora algumas meias-dúzias de moças ou rapazes que gostam da beleza negra. Seria apenas mais um entre milhares de mendigos que vagam pelos centros das cidades do Brasil, sua foto seria com desdém pela sociedade, e ele voltaria, logo após a fotografia, às ruas para ali viver por tempo indeterminado, senão para sempre.
Em outras palavras, para nossa sociedade, não é normal ver em mendicância e miséria um branco de aparência europeia. Para ela, brancos merecem muito mais do que isso. Mas, por outro lado, negros nas ruas pedindo esmolas e implorando por dignidade é considerado algo mais que normal. É tradição já. Por que eles merecem ser alçados a modelos a serviço da alta costura? Que se virem, vão trabalhar, procurar um emprego, correr atrás da escola aonde não foram na infância – assim pensa grande parte da sociedade que está agora se compadecendo com o pedinte eurodescendente.
Observando a história e seu contexto, percebemos que a grande sorte do mendigo ainda anônimo foi ser branco de olhos azuis, ter um forte fenótipo eurodescendente – e talvez ser até mesmo um imigrante europeu desabrigado. Sua beleza caiu nas graças do povo, seu nome será revelado a qualquer momento, e agora ele está tendo seu momento de fama e poderá virar um modelo a encantar as grifes e as pessoas que apreciam a beleza masculina. Se fosse negro, sendo ou não um imigrante, seria considerado “feio”, rebaixado a apenas “mais um” e continuaria visto como um mero rejeito a ser tratado como lixo pela sociedade, pelo Estado e por seu braço violento, a polícia.
A verdade é que o sujeito está prestes a subir na vida não tanto por acaso, talento ou esforço. Mas sim porque nossa sociedade é racista e eurocêntrica e, ao mesmo tempo que vira a cara para negros em situação de miséria, compadece de brancos que estão no mesmo estado. Afinal, ver afrodescendentes pedindo esmola e padecendo nas ruas é “normal”, mas brancos de olhos azuis considerados “bonitões”, não.
Se os brasileiros parassem de achar normal haver negros em miséria nas ruas e começassem a apreciar o padrão de beleza deles, passaríamos a ver as passarelas lotadas de ex-mendigos, fazendo companhia profissionalmente com o curitibano. Este sequer se tornaria a celebridade instantânea que se tornou. Mas se isso não acontece – e, ao invés, a miséria negra é tratada com banalidade –, é porque o racismo, destacadamente em suas vertentes social e estética, continua imperando forte e fazendo os brasileiros de todas as cores acharem brancos melhores que negros apenas por terem pele, cabelo e olhos claros.