terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Porta dos Fundos e os processos de incriminação e criminalização.



Não se esse vídeo já foi postado antes, mas achei interessante vê-lo depois de entender melhor sobre os processos de incriminação e criminalização e o modo como estes se atravessam o tempo todo. Um exemplo pode ser encontrado no caso da seletividade penal, que é a principal questão abordada pelo vídeo.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

O impacto do pré-julgamento e o filme "A Caça"

O dinamarquês A Caça, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes e concorre ao Oscar de filme estrangeiro, é um excelente trabalho de Thomas Vinterberg (diretor do celebrado Festa de Família, outro que trata do tema de abuso sexual infantil). É também um filme profundamente incômodo (trailer aqui), ainda mais pra quem está acostumado a ler relatos de abuso. 
Caça começa mostrando a rotina de um professor de jardim de infância, Lucas. Ele é adorado pelas crianças, principalmente por Klara, uma menina de 5 anos, filha do seu melhor amigo. 
Klara é bem solitária, e seus pais não lhe dão a devida atenção. 
Um dia, o irmão adolescente e um amigo, rindo, mostram alguns segundos de uma cena de filme pornô pra ela, e mencionam que o pênis na cena está duro como um bastão. Ela fica abalada ao ver aquilo.
Pouco depois, vemos que ela embrulha um coração de presente pra Lucas, e que, no meio de uma brincadeira com várias crianças, ela se joga sobre ele e lhe dá um beijo na boca. Lucas faz o que qualquer bom educador faria: explica pra ela que beijinho na boca, nessa idade, é só com papai e mamãe, e pergunta se ela não gostaria de dar o presente que fez pra outra pessoa. Ela se sente rejeitada. Naquela mesma tarde, ao falar amenidades com a diretora da escola, Klara diz que odeia Lucas, porque ele é tonto, feio, e tem um pênis. 

A diretora ri e responde: “Assim como seu pai e seu irmão e todos os homens.” E Klara: “É, mas o dele é levantado como um bastão”. A gente percebe que ela está repetindo as palavras que ouviu do amigo do irmão sobre o vídeo pornô, e vemos também que ela mente ao dizer que Lucas lhe deu um coração. 



O que você faria no lugar da diretora? É necessário acreditar na menina, não é? (se tem um filme em que você deve se imaginar na cabeça de cada personagem, praticar empatia, e perguntar “O que eu faria, no caso?”, é este). 
A diretora conta a Lucas o mínimo possível: não fala pra ele exatamente do que foi acusado nem por quem, o que torna qualquer chance de defesa muito difícil. Ela chama um psicólogo para entrevistar Klara. 


A menina está lacônica, não quer contar nada, como é frequente em casos de abuso. O psicólogo se precipita, após o silêncio de Klara, e pergunta, “É verdade que você viu o pipi de Lucas?” Ela balança a cabeça, dizendo que não. Ele insiste, até que ela confirma o que ele quer ouvir. 
O jardim de infância tem que notificar a polícia. A diretora afasta Lucas e pede aos pais que observem qualquer sintoma de abuso sexual nos seus filhos. A partir daí, vira uma Escola Base (um enorme caso de linchamento midiático e pré-julgamento ocorrido em São Paulo; em março o escândalo completa vinte anos). 

É revoltante, destroem a vida de Lucas. Claro que na vida real não é tão fácil. A gente não vê tudo montadinho como em A Caça, em que fica evidente que nada daquilo aconteceu.
Na vida real, casos de denúncias falsas como a do filme são raros (e neste texto falarei apenas de abuso sexual infantil, não de estupros contra pessoas adultas). 

Este site americano diz que as denúncias falsas ficam em no máximo 2%, embora alguns artigos afirmem que elas não são tão incomuns, especialmente em disputas pela custódia dos filhos. Memórias falsas podem serimplantadas sim, e, em ambientes de tensão, qualquer beijo, qualquer banho, pode ser interpretado como abuso.
Como diz Gabel, “O abuso sexual praticado contra a criança é uma das formas de maus-tratos que mais se ocultam: a criança tem medo de falar e, quando o faz, o adulto tem medo de ouvi-la”. 
A palavra da criança sempre deve ter importância, porque na maior parte das vezes, ela é tudo que se tem. Em geral não há indícios físicos nem testemunhas. Mas crianças mentem. É muito raro mentirem sobre abusos, mas também pode acontecer. (e compreender isso é totalmente diferente de pensar que toda denúncia é mentirosa).

Sem falar que o que nós entendemos por mentira não é o que a criança entende. Para a psicopedagoga Maluf, a criança de até 6 anos não consegue distinguir a mentira –- um engano intencional -– de seus jogos de faz-de-conta -- a fantasia. A realidade para uma criança é diferente do que é para um adulto.
Por isso, é um trabalho complicado aquele do psicólogx que tem que avaliar um abuso sexual infantil. O profissional tem que acreditar na vítima mesmo quando ela nega ou silencia o abuso. Ao mesmo tempo, ele não pode ter certeza que o abuso ocorreu. E nem conduzir a criança para que ela responda o que ele quer (que é o que ocorre em A Caça). 
Outra coisa complicada é... ser homem. Há poucos privilégios femininos, mas tocar e beijar uma criança sem ser vista como uma pervertida é um deles (se eu, que sou mulher, já fico cheia de dedos em encostar numa criança, imagino como deve ser pros homens).
Como entre 90% e 96% dos casos de abuso sexual infantil são cometidos por homens, quase sempre conhecidos da criança, a sociedade é ligeira em desconfiar de homens que trabalham com crianças. Em denúncias de abusos infantis, costumamos abrir mão muito rápido da presunção de inocência, um princípio básico de direitos humanos. Acreditar numa criança que denuncia abuso também é básico. 

Esses princípios não são irreconciliáveis. É preciso acreditar na vítima para se iniciar uma investigação justa. Mas também é preciso muita, muita cautela antes de tachar alguém de pedófilo. Porque, se você fosse acusadx de cometer esse crime hediondo, como acontece com Lucas no filme, você não iria querer ter o direito de ser julgado (e defendido) antes que todo mundo se voltasse contra você?


Fonte: http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

RESPONSABILIDADE CRIMINAL NAS ESQUIZOFRENIAS -II

http://www.ipub.ufrj.br/portal/ensino-e-pesquisa/ensino/residencia-medica/blog/item/600-responsabilidade-criminal-nas-esquizofrenias-ii

NOTA: durante muitos anos, debochei (até mesmo em aula) do conceito de "semi-responsabilidade" que decorre inevitavelmente do Par. ÚNICO do Art 26 do nosso C. Penal: aquele que reduz a pena prevista em "de um a dois terços" para o agente que não era "inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do ato ou de determinar-se...". E como gostava de o comparar com outros conceitos que implicam um "TUDO OU NADA: "semi-grávida", "semi-honesto"..! Hoje, "dou a mão à palmatória", como se usava dizer. A vida me apresentou um caso propiciando uma teorização que pode justificar e dar base à intuição dos que legislaram: é interessante a aplicação daquele parágrafo, especialmente diante de pacientes que conseguem entender o caráter delituoso do ato, mas não têm condições de resistir a certos assédios movidos por outros. Isso teria papel até muito educativo para os próprios, pois tendem a aceitar plenamente alguma culpabilização, não recorrendo a simulações. No próprio §, contrariamente ao que se lê no texto do Art., não há o típico "ao tempo da ação ou omissão", e isso sugere sua aplicação APENAS aos casos nos quais aquela INCAPACIDADE é PERMANENTE. Meus colegas da área poderiam investigar quantas vezes o § foi recomendado (por eles) e/ou aplicado nas últimas décadas.

.......................

A PARTIR DA LEITURA DO LAUDO OFICIAL:
 "Antes de tudo, há que esclarecer: não examinei o paciente em questão. As considerações abaixo referem-se apenas àquilo que li no seu prontuário do IPUB; do que colhi junto a seus familiares e, principalmente, ao que está registrado no próprio laudo em discussão. Como fui procurado pelos seus familiares, desde o acontecimento que gerou a atual situação, e empreendi alguns esforços pelo respeito aos seus direitos, achei que não deveria me omitir diante dos novos dados.
..................
Sim! Apesar dos enormes avanços dos conhecimentos no campo da PSIQUIATRIA, particularmente em relação às ESQUIZOFRENIAS, e do consenso formado quanto ao seu poder de comprometer praticamente TODAS as funções psíquicas, há ainda quem aplique a velha REGRA M'NAUGHTEN---criada na Inglaterra sob inspiração "Vitoriana" em 1843---na avaliação da RESPONSABILIDADE LEGAL. Segundo aquela regra, a irresponsabilidade penal somente decorreria caso um DELÍRIO, por exemplo, JUSTIFICASSE uma ato de LEGÍTIMA DEFESA no ataque a uma outra pessoa. Ou seja: aplicavam-se critérios válidos para avaliar as condutas de pessoas SEM transtornos do juízo para julgar pessoas cujo JUÍZO estava completamente prejudicado. Deveria ser chamada "regra da falta de bom senso". No caso em questão, somente esse espírito pode justificar a conclusão lida no laudo, apesar do diagnóstico atribuído pelo (a) próprio (a) perito (a): F.20.0 (Esquizofrenia Paranoide): "...não há nexo de causalidade entre a doença e o delito...à época dos fatos o periciando era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato (do ato?) e de se determinar de acordo com seu entendimento.
...................
A regra citada foi filha de seu tempo e seu espírito voltado à punição indiscriminada. Foi desenvolvida a partir de uma comissão de juristas criada pela própria Rainha Vitória, indignada com a absolvição de um paciente francamente delirante (Daniel M' Naughten, um escocês e isso teria influenciado a decisão da Rainha) que tentara assassinar o PM inglês. Ou seja: sua inspiração foi franca e confessadamente política e voltada para justificar a opressão sobre os escoceses. E ainda tentam lhe dar matizes de ciência! Como visava o isolamento de uma certa "índole para o mal" em relação ao restante do funcionamento mental, essa regra foi denominada "A PROVA DO BEM E DO MAL". Décadas depois, foi submetida a maiores restrições ainda e passou a ser chamada "Lei do Policial ao Lado": a irresponsabilidade seria considerada APENAS caso o IMPULSO IRRESISTÍVEL o fosse a ponto de o paciente adotar aquela conduta, mesmo que tivesse um policial ao seu lado (Material disponível na INTERNET).
.........................
NOTA POSTERIOR: a tendência a ver "índoles más" em toda a parte costuma revelar o que vai no coração dessas mesmas pessoas. E dizer que eles se diziam cristãos!
..............................
Hoje, a aplicação inflexível daquela regra me parece um ANACRONISMO de difícil aceitação, embora exista muita "inspiração vitoriana" entre nós. Afinal, a ESQUIZOFRENIA é a mais grave de todas as condições psiquiátricas, comprometendo gravemente, além do juízo, as funções afetivo/volitivas e mesmo as funções cognitivas em geral: atenção, inteligência, memória e outras. Conforme se pode ler no próprio laudo, apesar de saber o caráter ilícito do ATO, a capacidade do paciente de se determinar estava muito comprometida. A própria ingenuidade com que ele mesmo falou de sua PERPLEXIDADE diante de como se deixou levar por motivações que ele mesmo desconhece (até hoje), deveria ser considerada. Argumentar, por exemplo, que teria se tratado de um assalto e que, por isso e em princípio, a conduta não guardaria qualquer relação com a doença implica enrijecer e estreitar os critérios quase à "maneira vitoriana" de olhar o mundo.
.....................
O abandono---é verdade que sua aplicação retornou, nas últimas décadas, com toda a força no mundo anglo-saxão---daquela regra somente se deu quando, em 1954, o Juiz DL Bazelon formulou, diante de um acusado (M. Durham, no distrito de Columbia-EUA) aquela que ficou conhecida por REGRA DURHAN:
"...A separação entre o bem e o mal é inadequada, uma vez que: A- não leva em conta as realidades psíquicas e os conhecimentos científicos; B- toma como referência apenas UM sintoma e, por isso, não pode ser aplicada a todas as circunstâncias ....Assim, concluímos que se deve adotar norma mais ampla: um acusado não é criminalmente responsável se sua ação ilícita foi um produto de uma enfermidade psíquica ou de uma deficiência mental." (Compreheensive Textbook of Psychiatry Freedman-Kaplan and Sadock, Baltimore, 1977). Essas palavras continuam tão aplicáveis, segundo minha compreensão!
........................
NOTA POSTERIOR: tenho a impressão de que estamos vivendo, especialmente nesse campo, uma certa "volta do pêndulo" em relação às décadas de 1970/80, quando a influência psicanalítica prejudicou bastante a prática das perícias forenses. Cometeram-se, naquele período, muitos exageros "compreensivos" que prejudicaram a aplicação da lei. Talvez seja uma boa hora para a ajustar novamente as nossas práticas, à luz dos conhecimentos atuais.
.......................
Voltemos ao caso específico! Ficaram evidentes, no próprio relato dos peritos, pelo menos duas expressões de grave comprometimento da sua capacidade de julgar as situações e de se determinar, ambas decorrentes da doença de que sofre: a sua sugestionabilidade e desorganização de conduta. Em minha longa prática no HPRM, culminando com o exercício da Coordenação de Saúde do DESIPE (1985/7), examinei um paciente esquizofrênico em estado residual que lá estava sob custódia por ter tentado descontar um cheque falsificado que um desconhecido lhe dera, sob promessa de uma recompensa. Enquanto ele se dirigia ao caixa, o outro ficou do lado de fora olhando para ver a evolução das coisas. Como tudo deu errado, o falsário foi embora, e o paciente levado à delegacia. Pergunto: estava ele, naquele momento, em estado delirante? Provavelmente não. Poderíamos dizer, por isso, que sua doença não interferiu em seu julgamento e determinação? Também certamente NÃO. Vejam que o nosso paciente sequer ficou com o produto do roubo e adotou condutas tolas que o levaram a ser capturado, enquanto ou outro escapava e talvez não tenha sido capturado até hoje.
................
Por fim, louvo a honestidade do paciente ao não usar antigos sintomas para justificar sua conduta e enganar peritos. Dizer, como ele o fez: "Não teve nada a ver com voz" teve a sua beleza, assim como a sua própria perplexidade diante do seu ato. Por isso, afirmo: se querem mesmo melhorar a aplicação da LEI, de maneira a que tenha um papel educativo e protetor da sociedade, aumentem seu rigor contra as SIMULAÇÕES. Essas sim, como vimos recentemente em S. Paulo---quando um simulador enganou peritos e voltou a assaltar e matar---representam um perigo para a sociedade. Já os esquizofrênicos necessitam de apoio diuturno, de maneira a não se deixarem usar. Essas são as razões pelas quais discordo frontalmente da conclusão do laudo apresentado pelos peritos, mesmo louvando também a boa qualidade de suas observações: reforçaram muito as minhas convicções.