quinta-feira, 19 de abril de 2018

Ciclo de Debates - (Des)Razões da Intervenção no Rio de Janeiro (no campus Praia Vermelha da UFRJ)

Ciclo de Debates - (Des)Razões da Intervenção no Rio de Janeiro A Guerra Fria tinha instituído um padrão de controle político-ideológico das sociedades ocidentais após 1945. Este controle visava criar as condições da expansão fordista do capitalismo, sem afetar seus mecanismos contratendências de crise, vitais depois do grande horror de 1929 e dos acontecimentos que se seguiram, incluindo o nazi-fascismo e a IIª GM. A Guerra Fria devia manter o mundo numa trégua - uma espécie de estabilidade armada como poder dissuasivo e ameaça permanente do fim do mundo. Neste longo período, que se encerrou no início da década de 1990, num país alinhado com os EUA, como o Brasil, toda forma de transformação social com participação popular nunca poderia ser entendida como um aprofundamento da democracia. Desta impossibilidade lógica nasceu uma permanente e paranóica perseguição aos inimigos 'comunistas' - até chapeuzinho vermelho correu perigo! Já nos anos 1970, esta lógica de produção de inimigos internos precisou ceder ao projeto de distensão democrática da ditadura militar. Na Constituição de 1988, a Lei de Segurança Nacional perdeu a centralidade do período anterior, mas não foi totalmente revogada. Agora, o novo inimigo passou a ser produzido por outra teoria conspirativa do Pentágono: 'a guerra contra as drogas'. Com isso, surgiu outro tipo de inimigo para o controle - dessa vez social e político (o que permitiu incluir parte das 'forças progressistas' na sanha punitivista do Estado) - no período democrático que se avizinhava. Em geral, este inimigo eram as massas de jovens negros pobres desempregados das periferias dos grandes centros urbanos. O seu resultado em meio ao colapso econômico que perdura desde então - as famosas décadas perdidas, produzindo massas de desempregados! - foi elevar o índice de mortes (27/100 mil habitantes) por causas externas no Brasil ao nível de uma guerra civil de baixa intensidade. É uma guerra que ninguém sabe ao certo quem a declarou, mas os mortos estão aí e devem ter voz para que a reflexão sobre esta insanidade possa ser realizada. O saldo é uma sociedade crescentemente amedrontada e, por isso mesmo, cada vez mais autoritária e suscetível a aceitar que a política e a lei se transformem numa lógica de exceção. Mesa 1 - 07 de maio Produzindo inimigos internos - militarização da vida e estado de exceção: ontem e hoje Carlos Henrique Aguiar Serra - Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFF Orlando Zaccone - Delegado da Polícia Civil/RJ Pedro Paulo Bicalho - Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos (UFRJ) Mesa 2 - 11 de maio A guerra contra as drogas - a intencionalidade de um fracasso André Barros - Advogado da Marcha da Maconha/RJ Fernando Grostein Andrade - Cineasta e produtor do documentário “Quebrando o Tabu” Salo Carvalho - Professor Adjunto de Direito Penal, Faculdade Nacional de Direito (UFRJ) Mesa 3 - 14 de maio Dando voz aos nossos mortos - luto e luta contra a violência de Estado Ana Paula Oliveira - Mães de Manguinhos Renata Souza - mandato vereadora Marielle Franco Maria Isabel Fortes - Psicanalista, professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Departamento de Psicologia (PUC-RJ) Mesa 4 - 18 de maio A política por outros meios: a lei, o parlamento e a farda Wadih Damous - Partido dos Trabalhadores (PT) Renato Cinco - Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) Paulo Ramos - Partido Democrático Trabalhista (PDT) Mesa 5 - 21 de maio Formas do dissenso - só existe liberdade se for possível ser diferente Glaúcia Marinho - Justiça Global Spartakus Santiago - ativista e youtuber Claudio Nascimento - Rio Sem Homofobia Mesa 6 - 25 de maio Religião em tempos sombrios - a fé pode ser uma luz contra o arbítrio? Pastor Henrique Vieira Pe. Ricardo Rezende Figueira Mãe Meninazinha de Oxum Maria das Dores Machado - Professora Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Crise - A dimensão humana dos anônimos

Crise - A dimensão humana dos anônimos 


A crise econômica e política em curso normalmente é vista em números absolutos, em estatísticas de desemprego e em valores financeiros isolados, em que se destaca o desempenho do PIB ou por identidade contábil da renda nacional. 
Tais números frios e às vezes inteligíveis para a população no geral, escondem dor, luta, angústia e sofrimento por parte de milhões de pessoas, vítimas de um sistema político que enseja uma espécie de aversão aos menos favorecidos em algumas situações - preconceito, racismo e discriminação tomam a face do desprezo e indiferença. Abandonados, negros, brancos e pardos, anônimos nas estatísticas, têm em comum o fato de serem pobres e excluídos no geral da proteção do Estado, sem diferencial de gênero ou idade. 
Mulheres, homens, adolescentes e crianças vivem em comunidades e locais inóspitos, relegados a fi guras anônimas, como verdadeiros parias. A rotina de todos é marcada pela negação ao acesso básico à saúde, à educação e à formação profissional. Seres rejeitados são levados a um convívio com situações extremas de violência diária.  
Tendo sua dignidade e existência vilipendiadas por ações de políticas públicas incoerentes, compartilham a ausência do Estado em sua vida. Testemunhas e vítimas diárias de elevados índices de inefi ciência na oferta de serviços básicos, inclusive da prestação jurisdicional do sistema legal, observam em sua rotina, sem reação, enormes quantidades de desperdícios de recursos públicos.
 Em valores percentuais do PIB, o orçamento federal aloca recursos nas funções saúde e educação, por conta das obrigações constitucionais, equivalentes aos encontrados em países em que o nível de acolhimento às necessidades da população é aceitável, segundo critérios de organismos internacionais, no atendimento  à população em termos gerais.  
Então, o que justifica a existência de enorme carência e deficiência na prestação desses serviços para a população?  
Certamente, a existência de graves problemas de alocação desses recursos e um grande custo de intermediação, no geral.  
A administração pública custa caro e apresenta desperdícios por conta de procedimentos deficientes, em que os mecanismos de controle são muitas vezes precários e apresentam baixa transparência. 
A resposta formal a essas indagações, quando objeto de análise mais elaborada sobre o tema, termina por apresentar recomendações genéricas e, em alguns casos, repletas de casuísmo e premissas complexas de difícil implementação a curto prazo e médio prazo. 
A falha dos governantes e a fragilidade do Legislativo 
Por que motivo, os movimentos sociais e as representações no parlamento, em nível federal, estadual ou municipal, não atuam de forma consistente para o encontro de meios para a reversão deste problema secular? 
Deformações na legislação eleitoral criam falsas representações e distorcem na prática, a percepção para o eleitor de qual seriam as diferenças fundamentais, na forma de conduzir a política e a coisa pública, entre os partidos, como revelam os episódios mais recentes. 
Partidos políticos são, na verdade, organizações burocráticas, sendo verdadeiros centros de captura de receitas do orçamento e laboratório para o desenvolvimento de formas heterodoxas de acesso a vantagens espúrias, seja pelo uso da máquina pública, pelas indicações para a ocupação de cargos por correligionários, seja pelas práticas de benefícios a lobbies e castas de privilegiados, o que torna o processo legislativo um grande acerto de contas entre iguais. 
No atual momento o debate político prioritário deveria ser voltado para a melhoria na qualidade da representação parlamentar e necessitaria ter por meta a promoção de agendas voltadas à garantia da solvência das contas públicas, a inserção produtiva dos excluídos, a qualidade no ensino e o desenvolvimento de  habilidades nos mais jovens, centrada na explicitação de uma agenda de itens direcionados para a  inserção competitiva do Brasil na economia global, assim como a adoção de programas de aumento das capacitações, em um ambiente propício aos negócios e ao empreendedorismo. Ações, voltadas para a conquistas de ganhos de produtividade de forma sustentável. 
Como superar esse ciclo vicioso?
Outros países conseguiram, em um espaço relativamente curto de tempo, implantar e desenvolver estratégias de crescimento econômico e inclusão social com grandes sucessos. A própria Europa, no período pós-guerra, a Ásia com os modelos dos chamados “tigres”, pautando as economias em plataformas de produção voltadas para a exportação com ganhos expressivos de complexidade.   
As décadas de 60 e 70 do século passado mostraram que o Brasil dispunha de condições para grandes saltos. Naquele período, o investimento público foi a alavanca do crescimento acelerado. No entanto, o básico foi desprezado e a complementariedade entre os fatores de produção subdimensionada. À qualificação dos recursos humanos pela educação não foi dada prioridade. 
O momento, no entanto, revela a falência do Estado e a impossibilidade da adoção do modelo intervencionista na retomada do crescimento, daí a relevância da racionalização das políticas públicas voltadas à inclusão social com a opção preferencial nos ganhos de produtividade. 
Esse deveria ser um tema relevante a ser colocado no processo eleitoral em curso. 
O setor privado incorporou as ineficiências do Estado
Pesquisas de análise do desempenho das empresas nacionais apontam para a presença de um amplo espectro de empresas grandes, médias e pequenas operando com elevada ineficiência. No geral, as empresas brasileiras ocupam lugar inferior ou médio nos extratos realizados em avaliações de desempenho e produtividade em escala mundial.
A economia brasileira, com exceção do agronegócio, é pouco competitiva e apresenta elevada ineficiência alocativa. 
As razões apontadas são múltiplas, e passam por despreparo gerencial, deficiências na formação profissional da mão de obra, falta de crédito, custos de capital incompatíveis com a taxa de retorno esperada, convivência com um sistema tributário que gera cunhas e ônus à produção e, ainda, a ausência de consistência nas políticas macroeconômicas.
Incertezas, perda de credibilidade e debilidade fiscal arrastam empresas, setores e arranjos produtivos à vala comum, o que proporciona a destruição de capital físico e humano.

domingo, 1 de abril de 2018

A máquina de moer vidas


JOÃO TRAJANO SENTO-SÉ*

A morte tem seu próprio enredo, suas dores e desamparos. Não há comparação possível ou desejável entre uma morte e todas as demais. A vida, por outro lado, é universal no que tange ao direito de fruí-la e à sua inviolabilidade. No caso dela, não há distinções justificáveis. 
Há trinta anos o Rio de Janeiro tem invertido essa sentença básica. Banalizou a morte como parte de uma política de Estado, hierarquizou a vida como se apenas um segmento de cidadãos a ela tivesse direito. O resultado é, como não poderia deixar de ser, desastroso. Quebrar a universalidade do princípio do direito à vida equivale a projetar a todos num abismo de imprevisibilidade e insegurança. É o que temos. 
Estamos acumulando traumas e pranteando perdas como se esse fosse um dado inelutável da rotina de uma cidade. Mas não é! O Rio de Janeiro vive o resultado de escolhas ruins, desastradas e cabotinas que se repetem ano após ano. Os responsáveis por tais escolhas são suas lideranças políticas e seus apoiadores 
de todas as classes, credos e ideologias. É preciso repetir à exaustão: a dinâmica criminal no Rio de Janeiro, que  produz mortes em série, é uma escolha política, não se trata de disfunção técnica ou incompetência gerencial. 
Difundiu-se no Rio de Janeiro e no país a ideia de que estamos em guerra. É inadiável se levantar contra isso. A transformação da abordagem da segurança pública em uma guerra, independentemente de quem seja escolhido o inimigo da vez, produziu uma máquina de moer vidas em escala. Ela atinge, inclusive, aqueles que se rendem a tal lógica e se comportam sob sua égide. Essa máquina tem sido implacável e precisa ser desmontada. É ela que nos assombra e nos açoita cotidianamente. 
Nas últimas semanas, o Rio de Janeiro foi o cenário de dois traumas de grandes proporções: a intervenção federal pela via militar e a execução da vereadora Marielle Franco. O primeiro é a expressão reiterada da atmosfera e do modus operandi que resulta no segundo.  
Muito se tem destacado o lugar de fala de Marielle: mulher, negra, jovem, cria da favela, LGBT. O maior legado de Marielle, contudo, não foi o lugar de onde falava, mas os lugares em que falava. Ela rejeitou o gueto, o isolamento, o discurso do ressentimento e foi conversar com todos aqueles que, independentemente de gênero, de cor, de faixa etária, de origem social ou opção sexual, compartilhavam o reconhecimento da universalidade do direito à vida. Os 46 mil votos obtidos em 2016 foram “apenas” a tradução eleitoral dessa postura e dessa capacidade de circulação. O tamanho do trauma, contudo, não deve ser confundido com a ideia de que sua vida fosse mais valiosa do que a de qualquer outra, perdida nesse moedor que nos é imposto. Incorrer nesse erro equivaleria a trair o legado de Marielle. 
Em 2017, 6.731 pessoas foram vítimas de mortes violentas no Estado do Rio de Janeiro. Essas perdas são irredutíveis entre si, como são as dores provocadas por elas. Não devemos cair na tentação de disputar se há, nesse pacote mórbido, vidas que valem mais do que outras. São todas privações singulares, únicas, lacerantes, impostas pelas escolhas de atores públicos que não apertam gatilhos e não portam armas de guerra, mas operam confortavelmente em escritórios seguros e climatizados. Eles pensam que há vidas que valem mais do que outras. Impõem sua lógica sinistra aos que não chegam sequer às suas antessalas e se alimentam da capacidade de fazer com que outros, esses mesmos que não chegam às suas antessalas, acreditem em suas ideias. 
Podemos dar um basta nisso. O primeiro passo é evitar o esgarçamento de hostilidades que nos levam a acreditar que existem vidas melhores do que outras. É dessa convicção que se alimenta a máquina de moer vidas. Ela funciona há, pelo menos, três décadas no Rio de Janeiro. Seu funcionamento resulta de escolhas, de decisões tomadas longe daqueles que morrem em função dela. A segunda providência é banir seus mentores da atividade pública, assim como sua convicção errônea de que as vidas são distribuídas hierarquicamente no corpo social. Essa é uma tarefa política.

* sociólogo, pesquisador do Laboratório de Análise de Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV/Uerj).

disponível em: A máquina de moer vidas