domingo, 30 de dezembro de 2012

Por um feminismo que pense na condição da mulher trans


Quando o feminismo incitou as mulheres a lutarem pela igualdade de gêneros, pela destruição da opressão que transforma a mulher em um ser inferior ao homem e que, nessa condição, deveria se recolher ao seu karma quase cósmico de alguém que deve obediência e resignação à superioridade masculina em diversos aspectos – as mulheres trans* não conseguiram entender, já que até hoje são vistas como inferiores inclusive às próprias mulheres (ou àquilo que a sociedade petrificou na significação do que é ser mulher). Inferiores ao humano e, portanto, tratadas como seres a quem ninguém é obrigado a ouvir as reinvindicações.
Infelizmente, ainda hoje em dia, parece difícil acabar com a manipulação muitas vezes quase criminosa de um determinismo biológico que concretizou fatos que parecem rasos diante de tantas e tão diversas ciências que estudam a sexualidade humana. Aquela meia-verdade, que grita pela boca do cientificismo, que mulheres são seres com vagina, útero e cromossomos XX. Quanto às mulheres trans*? Essas são imitações mal feitas, essas são produtos inacabados de um engodo, uma enganação. Quando o feminismo eclodiu como um sistema de ideologias que visam propagar a igualdade entre mulheres e homens, muitas das trans* não puderam compartilhar da luta, pois estavam tentando demonstrar ao mundo que eram seres humanos, algo ainda anterior a possuir ou não possuir um gênero. E, seres humanos genuínos, donos de verdades diversas, e antes de tudo, agredidas diariamente, a todo instante, por toda uma sociedade que não vê qualquer humanidade diante de uma mulher trans*.
Nesse ano de 2012, dados parciais do GGB (Grupo Gay da Bahia) nos dão conta que 126 mulheres trans* foram assassinadas em todo o país. Debruçando-se sobre esses números e o que eles representam, faz-se importante exibir um cenário em que as mulheres trans* não só são agredidas e mortas, mas também desrespeitadas inclusive pela mídia e sociedade após os homicídios e, antes deles, o que inclusive é explicação para a causa dos mesmos. Importante aqui notar que o governo brasileiro não possui qualquer censo da transexualidade no país, que nos dêem com precisão dados de quantas mulheres trans* possuímos, ou mesmo dos crimes de motivos transfóbicos – a transfobia não é tipificação criminal para o estado brasileiro (talvez, por ter nenhuma importância perante as autoridades).
Comece pelo fato de que não são vistas como mulheres, ante isso, homens travestidos – grande maioria das vezes, gays com roupas de mulher. O mesmo preconceito que em vida matou-as diariamente, que nega a identidade feminina que elas assumem perante a sociedade e nega-lhes o direito básico e primitivo de possuirem um nome que atenda à uma dignidade atacada, um nome que não seja sinônimo de humilhação, como muitas o são diariamente por meio do comportamento sistemático da sociedade que prefere ver essas mulheres como quase cidadãs, quase homens, quase mulheres, quase gente.
Uma sociedade que não se importa em espezinhá-las e destruir a pouca ou rara auto-estima que podem possuir, no mais profundo de qualquer ser humano; e faz questão de ignorar o nome social (aquele que elas escolheram por trazer respeito e significação para o gênero que exercem). A prova disso é o que a grande mídia nos traz ao exibir as mulheres trans* em seus noticiários, há uma necessidade quase que embasada em um fanatismo cego ao dar nomes pelos quais essas mulheres foram registradas quando nasceram – como se isso fosse necessário para entendermos e compreendermos quaisquer que fossem os dados apresentados. Uma necessidade de demonstrar para a sociedade que se está diante de uma fraude, é isso, para essa mídia, ser mulher trans* é tentar fraudar um sistema sexual aprisionado e que aprisiona. Não tente lutar contra ele, pois exibirão a todos, quase que como castigo, que você nasceu e foi designada como homem, recebeu um registro de gênero masculino e ostenta em seu RG um nome que na maioria dos casos só lhe causa constrangimento, pouco importando para o anunciante o sofrimento que isso venha causar.
É quase uma celebração por um crime, tal e qual faziam e fazem em diversas sociedades, esquartejando e expondo em praça pública os restos mortais dos criminosos, a fim de que sirva de lição e medo para o restante da sociedade. É isso que fazem com as mulheres trans*, expõem aquilo que de mais precioso possuem, que é a própria identidade e significação, para em seguida demonstrar para todos: “Vejam, apesar dela se dizer mulher, é homem. Tem nome de homem, foi registrada como homem, mas continuem a ouvir o que essa figura exótica tem a dizer, para que aprendam o que acontecerá caso você ou alguém que você conheça, resolva lutar contra o que silenciosamente escreveram em uma lei não escrita: a que impede que seres humanos sejam respeitados por serem trans*”.
Quando o feminismo passou a lutar para que as mulheres saíssem de casa e fossem assumir postos de trabalho que só a um homem era possível, muitos viram nisso a destruição da unidade familiar, que até então incumbia às mulheres apenas e tão somente as funções domésticas – funções essas que a um homem era vedado, isso definitivamente só podia ser feito por mulheres. Hoje em dia, esse feminismo luta pela equiparação salarial entre mulheres e homens ocupando o mesmo cargo – é importante nesse caso frisar o exercício da presidência da república brasileira por uma mulher. Isso seria um disparate até poucas décadas atrás, loucura das maiores!
Nada disso as mulheres trans* conseguiram saborear, ainda são expulsas das escolas pelas grandes e microagressões diárias de alunos e professores que fazem questão de gritar que não são mulheres. Rejeitadas do mercado de trabalho, já que foram desde logo associadas ao roubo, ao crime. Raras mulheres trans* conseguiram destruir os grilhões que sempre as prenderam e as transformaram em subproduto da espécie humana e, nesse ponto também é importante salientar conquistas dignas de uma presidência da república. Luma Andrade, travesti nordestina que conseguiu um diploma de doutorado no ano de 2012 – sua história de vida é um caso exemplar de quem nunca foi vista como mulher, de quem sofreu todos os reveses da negação de uma humanidade que chegou tardiamente aos olhos da sociedade, que resolve só privilegiar como gente aquelas que não se prostituíram ou largaram a prostituição. Palmas para Luma Andrade, que sozinha mostrou-nos ser um exército, e que sozinha simboliza milhares de mulheres trans* por todo o país que poderiam (e podem) também chegar lá. Palmas a todas as mulheres trans* que não saíram no noticiário, pois não conseguiram um diploma de mestrado ou doutorado ou por quê não foram acusadas de qualquer crime, mas que mesmo assim trabalham dignamente e superam diariamente agressões vindas de todos os lados daqueles que não as reconhecem como mulheres (frisando nesse ponto o fato de que a mídia diariamente prefere é mostrar que ser trans* é ser criminosa, nos diversos documentários e noticiários que demonstram o envolvimento da marginalidade trans* com os crimes – raramente se dá notícia de algo que fuja a isso).
Mas, antes que alguém saia em defesa da Luma com o intuito de instalar culpa nas demais trans* que se prostituem, é preciso lembrar a esses moralistas que ser prostituta no Brasil não é crime – ante isso, é um trabalho legítimo e que se existente, é por conta da lei da oferta e procura. Também é importante notar, nesse ponto, o fato de que muitos daqueles que resolvem crucificar as trans* que se prostituem são os que fazem uso desse serviço às escondidas, no anonimato que os salva para mais tarde condenarem-nas como “esses travecos que não se dão o respeito”. Não, não são elas que não se dão ao respeito, é o restante da sociedade que decidiu que não as respeitaria – elas nunca souberam o que é respeito, pois nunca foram respeitadas, sempre vistas como “o traveco da esquina, do bairro, da escola”. No que tange a questão da prostituição, ao patriarcado que domina e permeia as questões morais da sociedade brasileira, difundiu-se entre homens e mulheres, que se um homem quiser fazer usufruto do serviço de uma prostituta, não pode ser com uma mulher trans* – com as demais, tudo bem, será até elogiado pelos amigos, mas com mulheres trans* é algo inaceitável, criminoso, diriam muitos. Afinal de contas, para essa sociedade que ignora o que é gênero, papel e identidade de gênero e não sabe diferenciar isso de orientação sexual , se um homem transar com uma mulher trans*, ele terá se contaminado – por osmose, de certo – com a homossexualidade [ou homossexualismo(sic), diriam os incautos]. Uma homossexualidade ainda mais terrível, já que além dessas criaturas serem gays, ainda ousam querer enganar os pobres rapazes de que são mulheres. Um acinte, de certo!
Partindo desse ponto de vista, não só o feminismo deveria lutar (como já faz) pela liberação sexual das mulheres e pela exigência de que a sociedade respeite as profissionais do sexo como seres humanos plenos de direitos, uma vez que essa mesma sociedade ou não se importa para o comportamento sexual libertino dos homens ou o exige, é também urgente pensar em prostituição feminina também pelo aspecto da discussão de gênero, da hierarquização e oligarquia que colocam mulheres trans* no fim dessa pirâmide que não lhes permite dignidade. É preciso pensarmos nisso, para que não corramos o risco de esquecer que há todos os tipos de mulheres nessa luta.
O embate levantado pelas feministas para que as mulheres retirassem o antolho que as transformavam/transforma em puta caso se dessem ao disparate de exercerem suas vidas sexuais tal e qual bem lhes conveniessem – algo que aos homens já foi facilitado desde que o mundo é mundo, traz notabilidade quando ainda no ano de 2012 vivemos em uma sociedade que mostra a mulher como objeto, bem de consumo, pedaço de carne em um açougue que diz que para ser carne de primeira é preciso se atentar aos padrões de beleza que a mídia machista lapidou em todo e qualquer comercial para homens. Mas também, é preciso salientar aqui que essa é a mesma sociedade que repercute a objetificação, fetichização e hiperssexualização das mulheres trans*, a essas não é dado sequer o “direito” de serem dignas preservando a própria vida sexual, já que são vistas como monumento ao sexo – pensar em transexualidade e travestilidade para a sociedade, de um modo geral, é pensar em genitais e no uso que se faz dos mesmos, nada mais.
Essa maior liberdade sexual proporcionou às mulheres o acesso universal aos anticoncepcionais – estavam enfim libertas de uma verdade mentirosa que sempre lhes disse que ser mulher era ser mãe. Agora, já poderiam inclusive negarem-se um papel que talvez não fosse o que gostariam de exercer.
Infelizmente, as mulheres trans* não acompanharam esse acesso – não, não estamos aqui falando de gravidez , evidente. Estamos falando de algo que talvez grande parte das mulheres (e homens) não saiba do que se trata: a hormonização das mulheres trans*. Muitas, para conseguirem revelar no corpo o que seu íntimo sempre lhe gritou: o fato de que são mulheres, resolvem fazer uso de anticoncepcionais, repositores hormonais femininos e anti-androgênicos (medicações que interrompem a produção de hormônio masculino). Nesse caso, é salutar trazer luz ao fato de que a hormonização das mulheres trans* difere em todos os princípios do uso dessas medicações feitos pelas mulheres não trans* – já que, os efeitos colaterais das drogas foram testadas apenas no corpo das mulheres não trans*. Sem sequer poder recorrer com fidedignidade à bula da medicação, é preciso que recorram a um médico especialista em hormonização de mulheres trans*. Logo, essas mulheres se depararão com um fato corriqueiro no Brasil: raros endocrinologistas estão preparados para isso.
Você sabe aquele seu direito de se atendida por um/uma ginecologista que você confie e que por ele/ela tenha empatia? Pois bem, no caso das mulheres trans*, o médico especialista pode não ser o que ela confia ou sente empatia, mas é o que existe – não há tantos endocrinologistas para mulheres trans* no Brasil, ou melhor: há raros. Também não há tantos médicos no Brasil, em todas as demais áreas, que respeitem as mulheres trans* como mulheres. Grande parte deles irão trata-las como a medicina atual vê as mulheres trans*: seres transtornados, patológicos. E, aqui cabe uma pergunta: se você trabalha, estuda, tem amigos, tem família, tem namorado/namorada, chora, sorri, vibra e se angustia; podemos nesse caso segregá-la como mulher com doença mental? Podemos segregar doentes mentais e não lhes conferir cidadania e respeito? Ou melhor, como a grande maioria dos médicos preferem ver as mulheres trans*: “homens que pensam que são mulheres, por conta da doença mental”.
A patologização da transexualidade, que instaura verdades diplomáticas e universais: toda mulher trans* é uma transtornada mental; é algo que faz com que a vida das mulheres trans* se dificulte em diversos aspectos diretamente ou indiretamente e, essa também deve ser uma luta das feministas, portanto: a luta pela despatologização.
Ainda no que se refere aos cuidados médicos, no Brasil atualmente há apenas quatro hospitais públicos capazes de realizar uma cirurgia de transgenitalização (a grande mídia e o grande público gosta de chamar essa cirurgia de “mudança de sexo”). Há uma precariedade no que diz respeito ao acesso de todas as mulheres trans* a essa cirurgia (e a todas que dizem respeito à feminilização dos seus corpos): nos hospitais existentes, faz-se uma ou duas cirurgias mensais e, dado o volume de mulheres que desejam realiza-la, é indispensável lutar pela universalização e facilidade ao acesso cirúrgico. Também é preciso lembrar que não se trata de cirurgia estética, mesmo quando uma mulher trans* precisa colocar uma prótese de silicone nos seios não estamos falando apenas e tão somente de beleza. Mulheres trans* que precisam da mamoplastia são como mulheres que perderam suas mamas para o câncer – a todos é suficiente lembrar o que é simbólico para uma mulher quando se fala em seios e vagina. Mas, às mulheres trans* brasileiras, só é permitido se colocar dentro de uma fila de milhares ou centenas de outras mulheres e rezar por uma cirurgia que talvez nunca chegará, uma cirurgia que poderia conferir dignidade à vida dessas mulheres.
No que se refere aos crimes praticados contra as mulheres trans*, são um apanágio da imoralidade e indecência daquilo que é o patriarcado, o sexismo, o machismo e a transfobia – ódio contra pessoas trans*. Para aquele que der a mínima importância e se esgueirar sobre as notícias, verá não só a destruição do que é ser mulher trans* pela mídia (dado o desrespeito pelo gênero e identidade das mesmas), como pelas formas horrendas e brutais que se dão os crimes: decapitações, mutilações, estupros seguidos de morte, tiros à queima-roupa, escarificações e empalamentos. Crimes que o público justifica (notando o desalinho com o gênero da vítima) das seguintes formas:
“Mas era um traveco, né?”
“Mas estava envolvido com drogas.”
“Mas foi morto pelo próprio meio que vive.”
“Mas outras pessoas também morrem.”
“Mas olha como ele se vestia e andava.”
(…)
Qualquer desculpa serve, desde que essas pessoas precisem demonstrar que ser uma mulher trans* é a própria motivação para o esquecimento dos crimes. Qualquer desculpa serve se for para fechar os olhos diante da história de vida dessas mulheres, do que as levou para a prostituição, para as drogas, para o encontro com os braços da morte expressiva e fria, que a toda hora as assombra: agredidas tanto pelos civis, quanto pelos policiais. Você pode ser prostituta, mas se for trans* prostituta, isso é crime demais para os que assim se acham no direito de fechar os olhos para mortes de mulheres trans* – veja, ainda que a vítima não seja prostituta, nomeá-las assim resume tudo.
As mulheres trans* também lutam, tantas vezes sozinhas, pela representação dentro dos lugares que muitas mulheres resolveram lhes impedir: os banheiros públicos, por exemplo. Que agressão você estar apertada para ir ao banheiro, com a urina quase escorrendo pelas pernas e ser afrontada por uma mulher dentro do local que te vê como alguém insuficiente para fazer necessidades ali. Uma agressão que, se por um lado clama “segurança” das demais mulheres, impedindo que seres humanos excretem o que todos (homens ou mulheres) o fazem é a mesma que não se importa se uma mulher trans* usar o banheiro masculino, sofrerá estupro ou qualquer tipo de assédio. Parece-nos, nesse ponto, que a segurança da mulher trans* é menos importante, ou, não tem importância nenhuma.
É algo que as mulheres trans* não entenderam, quando as feministas passaram a lutar para que as mulheres deixassem de ocupar o espaço que teoricamente era apenas das mulheres – às mulheres trans*, inclusive os espaços autorizados às demais mulheres, continuam a ser a elas negados.
Se quisermos pensar em um feminismo que dignifique a todas as mulheres, também teremos que debater questões fundamentais para que possamos levar à todas as pessoas, sem distinção, o respeito ao gênero feminino das mulheres trans*. Se quisermos demonstrar que mulheres podem realizar tudo que qualquer homem, também precisamos nos debruçar diante da humanização das mulheres trans*, as quais ainda hoje em dia, não são traduzidas pela sociedade nem como "homem" e nem como mulheres [se quer como seres humanos].

fonte:http://www.transexualidade.com.br/2012/12/29/por-um-feminismo-que-pense-na-condicao-da-mulher-trans/

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