sábado, 7 de dezembro de 2013

Os bastidores da Comissão da Verdade do Rio, criada há seis meses

  • De depoimentos de torturadores a palestras em escolas, saiba como ela funciona
Mariana Filgueiras (Email · Facebook · Twitter)
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RIO — Em junho de 1978, a Argentina estava dividida. O horror imposto pela ditadura militar não combinava com o clima de euforia que a Copa do Mundo exigia do país — além de sediar os jogos, a Argentina ainda levaria o título. Filho do jornalista Norberto Armando Habegger, que fazia denúncias importantes sobre violações de direitos humanos na época, o menino Andrés Habegger, então com 9 anos, começou a rascunhar um diário. Todos os dias, escrevia sobre o que via, fossem gols ou panelazos. No dia 31 de julho daquele ano, anotou que tinha ido ao aeroporto de Buenos Aires levar o pai, que iria para o Rio de Janeiro. Não sabia que se tratava de uma fuga. Muito menos que seria o último abraço.
Capturado por três agentes do governo argentino que estavam no Brasil — país então sob os auspícios do general Ernesto Geisel —, Norberto desapareceu no Rio de Janeiro sem qualquer explicação.
Andrés nunca mais retomou o diário. Exilou-se por sete anos com a mãe no México, mas jamais deixou de buscar informações sobre o sumiço de Norberto. Sem sucesso. Hoje cineasta renomado na Argentina, onde começou a rodar no ano passado seu décimo filme, “El imposible olvido”, sobre a história do pai, ele quis vir ao Rio assim que soube que havia sido fundada aqui uma Comissão Estadual da Verdade para apurar crimes ocorridos durante a ditadura militar. Era uma esperança de avançar nas investigações pessoais — ele não tem dúvidas de que o pai foi morto aqui, com a conivência das forças militares brasileiras.
Criada em 30 de abril deste ano, a Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio), assim como as 77 que surgiram nos últimos dois anos em outros estados e municípios do país, segue o modelo de funcionamento da primeira, a Comissão Nacional da Verdade, fundada em novembro de 2011 pela presidência da República. Ao longo de dois anos, sete membros titulares e outros 14 auxiliares devem apurar as violações ocorridas por agentes do Estado de 1964 a 1985, e produzir um relatório conclusivo ao final (o da Nacional será publicado no mês que vem).

— A Comissão do Rio foi uma das últimas a serem criadas, justamente no Rio, um dos estados que mais precisavam de uma. O golpe foi aqui, muitos arquivos estão aqui, muitos militares envolvidos moram até hoje no Leblon, em Ipanema... — justifica a advogada Nadine Borges, enviada da Comissão Nacional para ajudar a estruturar a do Rio, que não economizou telefonemas para convencer deputados e o próprio governador, Sérgio Cabral, a dar celeridade à criação do braço regional. — O Rio era rota tanto para tortura quanto para exílio. Foi onde o maior número de militantes desapareceu.
Desvendando a Operação Condor
O depoimento de Andrés, portanto, era de suma importância para a CEV-Rio. Suas investigações poderiam dar pistas sobre o paradeiro de outros 11 estrangeiros desaparecidos aqui na mesma época, além dos agentes brasileiros envolvidos no episódio. Mais: o caso Habegger seria um caminho para ajudar a esclarecer a maneira como as ditaduras latino-americanas atuavam em conjunto, na aliança político-militar conhecida como Operação Condor.
Sem verba própria, a comissão não tinha como trazer o cineasta. Deu-se um jeito: o Consulado da Argentina pagou a passagem, e a hospedagem foi improvisada na casa da secretária-executiva da CEV-Rio, Virna Plastino, que tinha um quarto livre. Assim, o argentino passou alguns dias no Rio trabalhando com os pesquisadores.
Na manhã de 30 de outubro passado, uma quarta-feira, Andrés deu um depoimento público no auditório da sede da comissão, que funciona em um andar de um prédio no Centro emprestado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Contou em detalhes o que sabia sobre o incidente, pouquíssimo conhecido no Brasil. Apresentou fotos e documentos de 35 anos de buscas. Foi inquirido pelos integrantes e recebeu até sugestões de investigação da plateia. Havia 18 pessoas no auditório, entre historiadores, estudantes e curiosos que tinham confirmado presença no evento pelo Facebook (a página da CEV-Rio tem 2.241 “seguidores”).
— Convivi a vida inteira com um pai desaparecido — emocionou-se Andrés. — O que sabemos é que ele foi detido por três militares argentinos, com a ajuda de militares brasileiros, e que hoje estão presos por outros crimes.
Ao final da sessão, Andrés recebeu um documento que tinha sido encontrado na tarde anterior no Arquivo Público do Estado pelo membro mais novo da comissão, o estudante de Sociologia Victor Guimarães, de 22 anos: um relatório do Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), datado de agosto de 1977, que comprovava a existência de uma rede de informações entre as ditaduras da América do Sul naquele período específico. Inédito até para o governo argentino, o documento justificava a abertura de uma nova frente de pesquisa da comissão, exclusivamente sobre a Operação Condor.
— Vamos pesquisar a melhor maneira jurídica para ingressar no processo argentino, para apurar os nomes dos brasileiros que participaram do sequestro de Norberto — alegou o presidente da comissão, Wadih Damous, ao fim da audiência.
Era uma semana agitada na rotina da CEV-Rio. Depois do depoimento de Andrés, alguns integrantes do órgão tiveram tempo apenas para almoçar um sanduíche do Bob’s antes de entrar na reunião em que debatem a pauta da semana. Dos titulares, estavam presentes Nadine, Wadih, o advogado Marcelo Cerqueira, o jornalista Álvaro Caldas, o ex-senador Geraldo Cândido e o advogado João Ricardo Dornelles.
A garrafa de café acabou antes da metade do encontro, que durou duas horas. Participaram também alguns integrantes auxiliares, como Victor; o advogado Fábio Cascardo, de 27 anos, do grupo de trabalho que pretende transformar a Casa da Morte, de Petrópolis (local usado pelo Exército na ditadura para convencer militantes a virarem informantes, por meio de tortura), em Centro de Memória; e a pedagoga Ana Carolina Grangeia, de 24 anos, coordenadora das atividades pedagógicas (os membros visitam escolas públicas para falar sobre o trabalho).
É uma característica peculiar da comissão: entre os 20 integrantes, há profissionais de 75 anos, como Marcelo Cerqueira, trabalhando com jovens como Victor, Fábio ou Carol. Tudo intencional.
— Quisemos montar um grupo que desse continuidade a essas pautas para o resto de suas vidas. São jovens com atuação em militância e experiência em pesquisa. Eu não acredito que ninguém aqui vá virar um reacionário — ressalta Nadine, que formatou a equipe.
Além da vinda de Andrés (mais tarde, fariam até um churrasco para sua despedida), o assunto principal da reunião foi o evento do dia anterior, considerado o maior acerto da comissão em seis meses de funcionamento: uma audiência pública que desmontou, 41 anos depois, a versão oficial do episódio conhecido como Chacina de Quintino — com o mesmo auditório lotado de estudantes, parentes das vítimas (que também deram testemunhos) e curiosos.
Assim que a comissão começou a funcionar, em maio deste ano, uma das primeiras a bater à porta pedindo ajuda foi a professora de história Fátima Setúbal, de 60 anos. No dia 29 de março de 1972, ela teve um irmão militante da VAR-Palmares (a mesma organização a que pertenceu a presidente Dilma Rousseff) morto em suposto tiroteio dentro de uma casa em Quintino. Outras duas militantes também morreram no episódio. Segundo a versão oficial que consta do registro da Delegacia de Ordem Política e Social (Dops), agentes da Segurança Nacional foram recebidos a bala ao entrar no aparelho subversivo e, em legítima defesa, revidaram.
Como nunca aceitara a versão, Fátima foi procurar a comissão. Convencidos de que o caso merecia atenção, assessores foram a campo: vasculharam documentos de arquivos públicos; pediram ajuda à secretaria de Segurança Pública para levantar envolvidos ainda vivos (a resposta não foi enviada até hoje). Com o carro de Wadih, baixaram em Quintino para ouvir testemunhas (lá chegando, descobriram que o local fica em Cascadura, na verdade). Pediram ajuda à Comissão Nacional para mandar peritos de Brasília. Com base no depoimento do especialista que examinou os corpos no IML, localizado pelos pesquisadores, constatou-se que não havia resquício de pólvora na mão dos militantes. Assim, foi possível conhecer as reais circunstâncias das mortes.
— Essa é a verdade que vai passar a vigorar a partir de hoje. Não houve confronto, os militantes foram executados — declarou João Ricardo Dornelles, no final da audiência.
Com o resultado das investigações em mãos, só agora os parentes podem entrar com ações contra o Estado.
Tem sido essa a rotina do trabalho da Comissão da Verdade do Rio: caso a caso, de maneira ainda morosa, mas, de certa forma, eficaz — já que tem a prerrogativa de atuar como um órgão de Estado, com pleno acesso a documentos confidenciais e poder de convocar depoimentos. Os recursos financeiros são poucos — vinculada por decreto à Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos, custa por mês R$ 130 mil à pasta, que não recebeu acréscimo no orçamento para bancá-la. Além de emprestar a sala onde funciona a comissão, a OAB não cobra as contas de luz, água e telefone.
— Vamos pleitear uma verba própria, além de mais pesquisadores. A estrutura que temos é ínfima — reclama Wadih, que só conseguiu a cooperação da OAB por ter sido presidente da entidade no passado.
No dia seguinte ao depoimento de Andrés, às10h, três integrantes da comissão já estavam de luvas no Arquivo Público. A jornalista Denise Assis, coordenando o trabalho de Victor e Carol. Lá, eles têm uma salinha própria, com um computador, um scanner e um laptop. Victor passa o dia digitalizando documentos (muitos estão em péssimas condições de conservação). Carol os cataloga. Quando encontram algum que possa servir às frentes de pesquisa, mesmo de outras comissões, como a Nacional, o enviam na hora, por e-mail, aos pesquisadores responsáveis.
Como aconteceu com o cartaz usado pelo Dops para procurar o militante do PCB Fabio Oscar Marenco dos Santos em março de 1970, que usava por codinome “Emilio” ou “Baixinho” (cuja imagem ilustra a capa desta edição). O documento o descreve como “terrorista procurado” por estar envolvido em três episódios: uma tentativa de assalto a banco, um roubo de veículo e uma possível participação no sequestro do cônsul japonês Nobuo Okushi. Como o documento pode ser útil ao grupo de trabalho “mortos e desaparecidos políticos”, já foi salvo em uma pasta específica no computador.
A boa relação com outras Comissões da Verdade é primordial. Não à toa, a CEV-Rio tem feito lobby para que outras cidades tenham as suas. Niterói criou uma no dia 11 deste mês; e Volta Redonda, em 10 de outubro. As de Macaé e Campos já estão ativas. Estão em processo as de São Gonçalo e de Nova Iguaçu.
— É fundamental a presença de grupos trabalhando na Baixada, onde ficavam muitos aparelhos — diz Geraldo Cândido, logo depois de voltar de um encontro com vereadores de Caxias.
Na lista de atividades externas, há ainda visitas a instituições como Dops ou Doi-Codi, que a comissão pretende transformar em Centros de Memória, e o projeto para mudar os nomes de escolas públicas batizadas em homenagem a militares.
A primeira troca será feita no próximo dia 10, em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos: o Colégio Estadual Presidente Costa e Silva, em Nova Iguaçu, vai ganhar o nome do ativista social Abdias Nascimento.
Outra frente são as visitas a escolas para palestras. A última ocorreu no dia 14, em seminário sobre a censura organizado por alunos da Faetec no Parque das Ruínas, em Santa Teresa. O principal convidado era o ex-preso político João Figueiró, sobrevivente de duas ditaduras (de 1945 e 1964), hoje com 88 anos. Fábio e Victor representavam a entidade (para alegria dos alunos, que não esperavam palestrantes tão jovens). Ao avaliar essa agenda, Nadine se entusiasma:
— No Brasil há um fomento da política do esquecimento como uma estratégia de Estado. Não vamos conseguir punir ou condenar porque não temos esse caráter. As pessoas tendem a achar que a Justiça é só o judiciário, mas a gente está fazendo justiça até quando fala nas escolas sobre as violações dos direitos humanos.
Cara a cara com o algoz
Ainda que não tenha localizado nenhum desaparecido político — o que seria, para seus integrantes, o ponto alto dos resultados, já que o Rio ainda tem 111 deles, entre casos emblemáticos, como Stuart Angel e Rubens Paiva — a Comissão já coleciona algumas conquistas em seus seis meses de funcionamento, além do desmantelamento da versão oficial da Chacina de Quintino. No dia 14 de agosto deste ano, seus integrantes, com a ajuda da Comissão Nacional, convocaram para prestar depoimento o coronel reformado Walter Jacarandá, acusado de ter assassinado o ex-dirigente do Partido Comunista Mário Alves.
Pela primeira vez na história, um militar reconheceu ter participado de sessões de tortura. Diante da filha da vítima, no entanto, negou ter responsabilidade na morte dele. Membro da CEV-Rio, Álvaro Caldas, que alega ter sido torturado por Jacarandá no início de 1970 nos porões do Doi-Codi, deu detalhes do seu suplício cara a cara com o torturador, que disse não tê-lo reconhecido.
Outra conquista foi a entrada presencial no Doi-Codi, no Centro do Rio, depois de terem sido barrados duas vezes, para entregar a oficiais do Exército um ofício com pedidos de esclarecimentos sobre incidentes ocorridos durante a ditadura — e este foi o único encontro entre a comissão e militares.
Agora, o objetivo é se debruçar sobre os casos prioritários: os desaparecimentos de Stuart Angel, Mário Alves, Rubens Paiva e o episódio da carta-bomba que explodiu no prédio da OAB, em 1980, matando a secretária Lyda Monteiro da Silva, na mesma sala onde hoje funciona a comissão.
Ah, esses ‘alienígenas’
O trabalho de passar os dias fuçando documentos da ditadura tem seus momentos curiosos. Noutro dia, a jornalista Denise Assis, integrante auxiliar da Comissão com vasta experiência em acervos, encontrou um documento confidencial do Dops, inédito, de 5 de julho de 1977, no Arquivo Público: um relato sobre a “propaganda psicológica” que a moda hippie usada pelos jovens “alienígenas” causava na sociedade. Como suas barbas, cabeleiras, calças jeans surradas, sandálias de pneu: “Essa moda tem uma significação de protesto, rejeitando os costumeiros trajes protocolares, da vida cotidiana, atuando sobre os sentidos, impressionando as massas, despertando-lhes agressividade (...). Onde seu comportamento positivo desce ao delírio, tanto estático, como furioso”. O relato nota que a moda hippie estava migrando para o “war-look”, “uma moda-soldado vinda do Vietnam”. Chama atenção, além do detalhamento dos tecidos e adereços, a conclusão do relator: “A propaganda é disseminada pelos ‘costureiros’, butiques, e os elementos do meio artístico-cultural e seus trajes ‘avançados’.

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