JOÃO TRAJANO SENTO-SÉ*
A morte tem seu próprio enredo, suas dores e desamparos. Não há
comparação possível ou desejável entre uma morte e todas as demais. A
vida, por outro lado, é universal no que tange ao direito de fruí-la e à
sua inviolabilidade. No caso dela, não há distinções justificáveis.
Há
trinta anos o Rio de Janeiro tem invertido essa sentença básica.
Banalizou a morte como parte de uma política de Estado, hierarquizou a
vida como se apenas um segmento de cidadãos a ela tivesse direito. O
resultado é, como não poderia deixar de ser, desastroso. Quebrar a
universalidade do princípio do direito à vida equivale a projetar a
todos num abismo de imprevisibilidade e insegurança. É o que temos.
Estamos
acumulando traumas e pranteando perdas como se esse fosse um dado
inelutável da rotina de uma cidade. Mas não é! O Rio de Janeiro vive o
resultado de escolhas ruins, desastradas e cabotinas que se repetem ano
após ano. Os responsáveis por tais escolhas são suas lideranças
políticas e seus apoiadores
de todas as classes, credos e
ideologias. É preciso repetir à exaustão: a dinâmica criminal no Rio de
Janeiro, que produz mortes em série, é uma escolha política, não se
trata de disfunção técnica ou incompetência gerencial.
Difundiu-se
no Rio de Janeiro e no país a ideia de que estamos em guerra. É
inadiável se levantar contra isso. A transformação da abordagem da
segurança pública em uma guerra, independentemente de quem seja
escolhido o inimigo da vez, produziu uma máquina de moer vidas em
escala. Ela atinge, inclusive, aqueles que se rendem a tal lógica e se
comportam sob sua égide. Essa máquina tem sido implacável e precisa ser
desmontada. É ela que nos assombra e nos açoita cotidianamente.
Nas
últimas semanas, o Rio de Janeiro foi o cenário de dois traumas de
grandes proporções: a intervenção federal pela via militar e a execução
da vereadora Marielle Franco. O primeiro é a expressão reiterada da
atmosfera e do modus operandi que resulta no segundo.
Muito se
tem destacado o lugar de fala de Marielle: mulher, negra, jovem, cria da
favela, LGBT. O maior legado de Marielle, contudo, não foi o lugar de
onde falava, mas os lugares em que falava. Ela rejeitou o gueto, o
isolamento, o discurso do ressentimento e foi conversar com todos
aqueles que, independentemente de gênero, de cor, de faixa etária, de
origem social ou opção sexual, compartilhavam o reconhecimento da
universalidade do direito à vida. Os 46 mil votos obtidos em 2016 foram
“apenas” a tradução eleitoral dessa postura e dessa capacidade de
circulação. O tamanho do trauma, contudo, não deve ser confundido com a
ideia de que sua vida fosse mais valiosa do que a de qualquer outra,
perdida nesse moedor que nos é imposto. Incorrer nesse erro equivaleria a
trair o legado de Marielle.
Em 2017, 6.731 pessoas foram vítimas
de mortes violentas no Estado do Rio de Janeiro. Essas perdas são
irredutíveis entre si, como são as dores provocadas por elas. Não
devemos cair na tentação de disputar se há, nesse pacote mórbido, vidas
que valem mais do que outras. São todas privações singulares, únicas,
lacerantes, impostas pelas escolhas de atores públicos que não apertam
gatilhos e não portam armas de guerra, mas operam confortavelmente em
escritórios seguros e climatizados. Eles pensam que há vidas que valem
mais do que outras. Impõem sua lógica sinistra aos que não chegam sequer
às suas antessalas e se alimentam da capacidade de fazer com que
outros, esses mesmos que não chegam às suas antessalas, acreditem em
suas ideias.
Podemos dar um basta nisso. O primeiro passo é
evitar o esgarçamento de hostilidades que nos levam a acreditar que
existem vidas melhores do que outras. É dessa convicção que se alimenta a
máquina de moer vidas. Ela funciona há, pelo menos, três décadas no Rio
de Janeiro. Seu funcionamento resulta de escolhas, de decisões tomadas
longe daqueles que morrem em função dela. A segunda providência é banir
seus mentores da atividade pública, assim como sua convicção errônea de
que as vidas são distribuídas hierarquicamente no corpo social. Essa é
uma tarefa política.
* sociólogo, pesquisador do Laboratório de Análise de Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV/Uerj).
disponível em: A máquina de moer vidas
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