domingo, 1 de abril de 2018

A máquina de moer vidas


JOÃO TRAJANO SENTO-SÉ*

A morte tem seu próprio enredo, suas dores e desamparos. Não há comparação possível ou desejável entre uma morte e todas as demais. A vida, por outro lado, é universal no que tange ao direito de fruí-la e à sua inviolabilidade. No caso dela, não há distinções justificáveis. 
Há trinta anos o Rio de Janeiro tem invertido essa sentença básica. Banalizou a morte como parte de uma política de Estado, hierarquizou a vida como se apenas um segmento de cidadãos a ela tivesse direito. O resultado é, como não poderia deixar de ser, desastroso. Quebrar a universalidade do princípio do direito à vida equivale a projetar a todos num abismo de imprevisibilidade e insegurança. É o que temos. 
Estamos acumulando traumas e pranteando perdas como se esse fosse um dado inelutável da rotina de uma cidade. Mas não é! O Rio de Janeiro vive o resultado de escolhas ruins, desastradas e cabotinas que se repetem ano após ano. Os responsáveis por tais escolhas são suas lideranças políticas e seus apoiadores 
de todas as classes, credos e ideologias. É preciso repetir à exaustão: a dinâmica criminal no Rio de Janeiro, que  produz mortes em série, é uma escolha política, não se trata de disfunção técnica ou incompetência gerencial. 
Difundiu-se no Rio de Janeiro e no país a ideia de que estamos em guerra. É inadiável se levantar contra isso. A transformação da abordagem da segurança pública em uma guerra, independentemente de quem seja escolhido o inimigo da vez, produziu uma máquina de moer vidas em escala. Ela atinge, inclusive, aqueles que se rendem a tal lógica e se comportam sob sua égide. Essa máquina tem sido implacável e precisa ser desmontada. É ela que nos assombra e nos açoita cotidianamente. 
Nas últimas semanas, o Rio de Janeiro foi o cenário de dois traumas de grandes proporções: a intervenção federal pela via militar e a execução da vereadora Marielle Franco. O primeiro é a expressão reiterada da atmosfera e do modus operandi que resulta no segundo.  
Muito se tem destacado o lugar de fala de Marielle: mulher, negra, jovem, cria da favela, LGBT. O maior legado de Marielle, contudo, não foi o lugar de onde falava, mas os lugares em que falava. Ela rejeitou o gueto, o isolamento, o discurso do ressentimento e foi conversar com todos aqueles que, independentemente de gênero, de cor, de faixa etária, de origem social ou opção sexual, compartilhavam o reconhecimento da universalidade do direito à vida. Os 46 mil votos obtidos em 2016 foram “apenas” a tradução eleitoral dessa postura e dessa capacidade de circulação. O tamanho do trauma, contudo, não deve ser confundido com a ideia de que sua vida fosse mais valiosa do que a de qualquer outra, perdida nesse moedor que nos é imposto. Incorrer nesse erro equivaleria a trair o legado de Marielle. 
Em 2017, 6.731 pessoas foram vítimas de mortes violentas no Estado do Rio de Janeiro. Essas perdas são irredutíveis entre si, como são as dores provocadas por elas. Não devemos cair na tentação de disputar se há, nesse pacote mórbido, vidas que valem mais do que outras. São todas privações singulares, únicas, lacerantes, impostas pelas escolhas de atores públicos que não apertam gatilhos e não portam armas de guerra, mas operam confortavelmente em escritórios seguros e climatizados. Eles pensam que há vidas que valem mais do que outras. Impõem sua lógica sinistra aos que não chegam sequer às suas antessalas e se alimentam da capacidade de fazer com que outros, esses mesmos que não chegam às suas antessalas, acreditem em suas ideias. 
Podemos dar um basta nisso. O primeiro passo é evitar o esgarçamento de hostilidades que nos levam a acreditar que existem vidas melhores do que outras. É dessa convicção que se alimenta a máquina de moer vidas. Ela funciona há, pelo menos, três décadas no Rio de Janeiro. Seu funcionamento resulta de escolhas, de decisões tomadas longe daqueles que morrem em função dela. A segunda providência é banir seus mentores da atividade pública, assim como sua convicção errônea de que as vidas são distribuídas hierarquicamente no corpo social. Essa é uma tarefa política.

* sociólogo, pesquisador do Laboratório de Análise de Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV/Uerj).

disponível em: A máquina de moer vidas

 

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