quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Uma vida por vir: para além das grades do juízo


Por: Mateus Neto dos Reis

"Oh, senhor cidadão, eu quero saber, eu quero saber com quantos quilos de medo, com quantos quilos de medo se faz uma tradição?" ("Senhor Cidadão" - Tom Zé)

A cada vez que circulo pela cidade e me esbarro com um estudante de Direito, vejo que a espessura de seus livros cresceu duas vezes mais. Com dó de seus braços estirados aos limites, e que revelam o cansaço da tarefa de carregar os avolumados blocos de papel, reparo que o aumento do número de páginas me expõe, em sua mais nítida e assustadora concretude, aos investimentos na direção de judicializar a vida. Eu desejo chamar a atenção. A sua, minha, a dos estudantes do curso de Direito, de Psicologia, a atenção de qualquer um, para o fato de que uma vida extrapola as palavras, os papéis, os juízos, os juízes – e, acredite - a nós mesmos.

Aqueles que apreendem a tentativa de regulamentar uma vida jamais conseguirão esgotá-la de seus impreteríveis escapes. O escape é por natureza aquilo que é impossível de se conter. Quem viu algo escapar, só pôde o ver já escapando, em ato. Como num flagrante. Ou então, retrospectivamente. Não pôde prevê-lo, nem contê-lo, pois ele só ganha existência escapulindo. Uma vida, como um plano de pura imanência, para além do bem e do mal, e seus escapes inantecipáveis.

Ao circular pela cidade, os jovens psicólogos estão em contato com a vida pública em sua plena operação – na dependência do contato com pessoas que não escolheram. Estão lançados aos imprevistos. Na rua, pode ser que tropecem, que esbarrem, que sejam interpelados por alguém. Contudo, o que lhes acontecem? Como os jovens psicólogos se sentem ao exercer a vida pública?

As palavras deste texto berçam na aventura que é morar na cidade do Rio de Janeiro. E nascem, precisamente, daquilo que pude sentir ao viver na “Guanabara”. O medo é certamente um dos sentimentos que experimentei como transeunte, e como acanhado frequentador dos espaços cariocas. Suponho que você também já pôde sentir o sabor desse "medo urbano", que já provou de seu gosto amargo. Penso que talvez seja justamente aí, na malha fina do paladar, do sentir, que o jovem psicólogo encontre um território significativo a ser explorado. Sentir e pôr em questão o sabor, indagar-se sobre os procedimentos e mecanismos de produção afetiva, pôr em cheque a dimensão de "pré-coisa" da coisa. Equivocar o sentido acostumado do sentimento ao ponto de mergulhar os pés no Rio para sair desse ciclo vicioso. Ao ponto de sentir alguma coisa doce lhe penetrar, e pôr-se sensível às intensidades que cruzam para além e aquém do amargor do medo.

Tal incorporação do plano intensivo de forças na cartografia da subjetividade desafia o jovem psicólogo a entrever, como que por uma vertigem visionária, o compromisso ético-estético-político da Psicologia para com a vida. A ver o que Lombroso não viu: que o retrato dos presídios é efeito e não causa. E então procurar aliados, inconscientes que protestam, para que em nome ao direito a uma vida, inter-firam nos livros dos estudantes de Direito - assim como aponta Bicalho (2016) ao afirmar a atuação de uma Psicologia Jurídica nos processos de construção das leis. Lutar por microfissuras e pela criação de espaços abertos às singularidades deve ser sinônimo de fazer psicologia, ainda que jovem. Lutar com o intuito de dar a vida uma bossa nova: para além do pau, da pedra e do que parece ser o fim do caminho.


Referências:

BICALHO, P. P. G. "Da execução à construção das leis: a psicologia jurídica no legislativo brasileiro" In: Atualidades em Psicologia Jurídica. Rio de Janeiro: Nau, 2016, p. 1-15.

DELEUZE, G. "Imanência: Uma Vida..." Limiar, vol.2, nº 4, 2016.

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