segunda-feira, 9 de maio de 2016

Pacientes do Heitor Carrilho não tem para onde ir

 Esquecidos pela família, liberdade é inútil para internos que cumpriram pena no antigo manicômio judiciário


A primeira pergunta de Edilson da Silva é se os bancos ainda estão em greve. Com a resposta afirmativa, ele coloca a mão na cabeça e diz que quer comer pão com mortadela. Logo em seguida, tira do bolso uma carteira com a estampa do Flamengo. Dentro, não há dinheiro, e sim sua identidade, que acabou de receber, aos 26 anos. Mostra com orgulho o documento, mas abre um sorriso quando revela o que tem no outro bolso da calça: um recorte de um anúncio do videogame que sonha comprar. Um dos 69 pacientes do antigo Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho — hoje transformado em instituto de pesquisa e abrigo —, Edilson passou por uma perícia psiquiátrica e já poderia estar em liberdade há quase dois anos. Mas continua no abrigo como muitos companheiros dali, que perderam por completo o contato com a família.

— A medida de segurança (o período de reclusão) deles já foi cumprida, mas a maior dificuldade é encontrar os parentes a partir de relatos que eles nos trazem. Muitos pacientes fantasiam as histórias que contam — explica a psicóloga Monica Souza Tostes, coordenadora do Heitor Carrilho, o mais antigo hospital do sistema prisional brasileiro, inaugurado em 1921.

Edilson não sabe onde estão os pais. Antes de ser preso, por roubar o alumínio da janela de uma cabine de polícia no Leblon, morava numa Kombi abandonada no Morro Pavão-Pavãozinho. Aos amigos e médicos do Heitor Carrilho, repetia, com frequência, relatos sobre uma família que o ajudava nessa época. Depois de muitas buscas em meio a informações desencontradas, Simone Hilário Souza foi localizada na comunidade em Copacabana.

— Ele sempre frequentou a minha casa e convivia com a minha família. De repente sumiu. Achei até que tivesse morrido. Agora que sabemos o que passou, não podemos abandoná-lo. Ele vai construir um quartinho aqui na minha laje — conta Simone, de 43 anos, que cuida sozinha de sete filhos e trabalha lavando roupa e fazendo faxina, esporadicamente.

No começo de outubro, Edilson subiu mais uma vez o morro, dessa vez para aguardar um caminhão com material de construção. Ele mesmo pagou a compra usando parte do benefício de um salário mínimo que recebe — dinheiro que fica sob a administração do hospital. Estava ansiosíssimo. Subiu e desceu os quatro andares do prédio onde Simone mora incontáveis vezes. Só parou quando deixaram que ele usasse o computador.

— Vou jogar Mario Bros — disse, mostrando desenvoltura com a máquina, posicionada no único cômodo da casa, decorada com bichinhos de pelúcia, um pôster do grupo funk Bonde da Madrugada e muitos troféus de um dos filhos de Simone, que é campeão de jiu-jítsu.

Quando terminar a obra, Edilson vai poder deixar, finalmente, o abrigo onde mora desde 2009. Mas o destino dele está longe de ser o dos outros internos do Heitor Carrilho. São poucos os que têm certidões de nascimento, recebem benefícios ou visitas. Alguns vieram de outros estados e nunca tiveram nem conhecidos localizados. Outros não conseguem lembrar o nome dos parentes mais próximos. Carlos Almeida de Freitas, de 66 anos, por exemplo, furtou uma bicicleta em 1992 e foi encaminhado para tratamento psiquiátrico. Ganhou liberdade há 13 anos, mas não tem para onde ir. A esperança dos internos, e de quem cuida deles, é que uma foto ou nome divulgado possa chegar aos olhos e ouvidos de parentes.
Quando a acusação é de um homicídio de um membro da própria família, a situação é ainda mais grave. Por causa de um crime desse tipo, Glaucia Maria Lage Teixeira foi abandonada pela família há oito anos. Aos 28 anos, ela se comporta como uma criança. Não consegue fazer sozinha as atividades mais simples do dia a dia, como tomar banho ou pentear o cabelo. Alterna momentos de agitação e silêncio. Gosta da cor rosa e não sai de sua cama sem um maço de cigarros, que guarda estrategicamente dentro do sutiã. Com o isqueiro que usa para fumar, Glaucia um dia ateou fogo na própria saia.
— É, não deveria ter feito isso. Doeu — murmurou a moça, conferindo se o pacote continuava no mesmo lugar e soltando uma gargalhada logo depois.
No dia 8 de outubro passado, o antigo manicômio virou Instituto de Perícias Heitor Carrilho. Os pacientes que permaneceram terão que deixar o local. Ainda não há prazo determinado para isso, mas os esforços estão sendo redobrados. Edilson, que vai morar no Pavão-Pavãozinho, deve continuar frequentando um serviço de saúde mental. Outros precisam ser encaminhados para residências terapêuticas com assistência 24 horas que são indicadas em situações de ausência de família ou de amigos, de acordo com a lei federal 10.216, de 2001.

A desinformação e o tabu em torno da doença mental dificultam ainda mais o processo, principalmente em casos como o de Eliane Silvino da Silva, que matou uma funcionária da clínica onde recebia acompanhamento médico, 24 anos atrás. Aos 52 anos, ela passou quase metade da vida internada em hospitais psiquiátricos. Durante a visita dos repórteres ao Heitor Carrilho, no início deste mês (autorizada pela Secretaria estadual de Administração Penitenciária), Eliane pediu, repetidamente, que o fotógrafo registrasse uma imagem sua. Disse que gostaria de levar todos os amigos para fora dali, para uma residência terapêutica. Ajeitou o vestido pelo menos três vezes. Sorriu e quis saber:
— Lá não tem eletrochoque não, né? — perguntou, referindo-se a eletroconvulsoterapia, indicada para indivíduos que sofrem de doenças mentais e que tenham depressão grave e risco de suicídio.
Dados preliminares de um estudo que está sendo conduzido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) mostram que, entre as pessoas com transtornos mentais, a taxa de reincidência de crimes é menor do que 5%. A diferença para o sistema penitenciário tradicional é impressionante: lá, o índice pode chegar a 70%.
— Existe um grande preconceito em torno dessas pessoas. É preciso desconstruir a ideia de que todos eles são perigosos para a sociedade e examinar cada indivíduo e seu histórico — afirma a psiquiatra Kátia Mecler, autora da pesquisa da UFRJ e diretora do Instituto de Perícias Heitor Carrilho.
José Alvez está em reclusão há quase cinco décadas, tempo que ultrapassa a pena máxima estabelecida pelo regime jurídico brasileiro, de 30 anos. Preso em junho de 1964, depois de ser acusado por um homicídio, ele já poderia estar fora de um hospital penitenciário há 18 anos. No entanto, ainda espera uma solução para o seu destino.
— A família geralmente abandona essa pessoa, que passa a ter, no ambiente desse hospital-presídio, sua única esfera de convivência, em um total alheamento do mundo exterior — analisa Débora Diniz, antropóloga da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora de um estudo sobre os hospitais de custódia e tratamento psiquiátricos no país. — Deve haver, na minha opinião, um trabalho de parceria entre a Justiça e a Saúde, entre o sistema prisional e o sistema de cuidados em saúde. Essas pessoas encontram-se em um limbo, em um ponto nebuloso entre esses dois mundos: o da infração penal e o da demanda por cuidado psicoterapêutico.

Fonte: http://oglobo.globo.com/rio/pacientes-do-heitor-carrilho-nao-tem-para-onde-ir-10438909

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