quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

RESPONSABILIDADE CRIMINAL NAS ESQUIZOFRENIAS -II

http://www.ipub.ufrj.br/portal/ensino-e-pesquisa/ensino/residencia-medica/blog/item/600-responsabilidade-criminal-nas-esquizofrenias-ii

NOTA: durante muitos anos, debochei (até mesmo em aula) do conceito de "semi-responsabilidade" que decorre inevitavelmente do Par. ÚNICO do Art 26 do nosso C. Penal: aquele que reduz a pena prevista em "de um a dois terços" para o agente que não era "inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do ato ou de determinar-se...". E como gostava de o comparar com outros conceitos que implicam um "TUDO OU NADA: "semi-grávida", "semi-honesto"..! Hoje, "dou a mão à palmatória", como se usava dizer. A vida me apresentou um caso propiciando uma teorização que pode justificar e dar base à intuição dos que legislaram: é interessante a aplicação daquele parágrafo, especialmente diante de pacientes que conseguem entender o caráter delituoso do ato, mas não têm condições de resistir a certos assédios movidos por outros. Isso teria papel até muito educativo para os próprios, pois tendem a aceitar plenamente alguma culpabilização, não recorrendo a simulações. No próprio §, contrariamente ao que se lê no texto do Art., não há o típico "ao tempo da ação ou omissão", e isso sugere sua aplicação APENAS aos casos nos quais aquela INCAPACIDADE é PERMANENTE. Meus colegas da área poderiam investigar quantas vezes o § foi recomendado (por eles) e/ou aplicado nas últimas décadas.

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A PARTIR DA LEITURA DO LAUDO OFICIAL:
 "Antes de tudo, há que esclarecer: não examinei o paciente em questão. As considerações abaixo referem-se apenas àquilo que li no seu prontuário do IPUB; do que colhi junto a seus familiares e, principalmente, ao que está registrado no próprio laudo em discussão. Como fui procurado pelos seus familiares, desde o acontecimento que gerou a atual situação, e empreendi alguns esforços pelo respeito aos seus direitos, achei que não deveria me omitir diante dos novos dados.
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Sim! Apesar dos enormes avanços dos conhecimentos no campo da PSIQUIATRIA, particularmente em relação às ESQUIZOFRENIAS, e do consenso formado quanto ao seu poder de comprometer praticamente TODAS as funções psíquicas, há ainda quem aplique a velha REGRA M'NAUGHTEN---criada na Inglaterra sob inspiração "Vitoriana" em 1843---na avaliação da RESPONSABILIDADE LEGAL. Segundo aquela regra, a irresponsabilidade penal somente decorreria caso um DELÍRIO, por exemplo, JUSTIFICASSE uma ato de LEGÍTIMA DEFESA no ataque a uma outra pessoa. Ou seja: aplicavam-se critérios válidos para avaliar as condutas de pessoas SEM transtornos do juízo para julgar pessoas cujo JUÍZO estava completamente prejudicado. Deveria ser chamada "regra da falta de bom senso". No caso em questão, somente esse espírito pode justificar a conclusão lida no laudo, apesar do diagnóstico atribuído pelo (a) próprio (a) perito (a): F.20.0 (Esquizofrenia Paranoide): "...não há nexo de causalidade entre a doença e o delito...à época dos fatos o periciando era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato (do ato?) e de se determinar de acordo com seu entendimento.
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A regra citada foi filha de seu tempo e seu espírito voltado à punição indiscriminada. Foi desenvolvida a partir de uma comissão de juristas criada pela própria Rainha Vitória, indignada com a absolvição de um paciente francamente delirante (Daniel M' Naughten, um escocês e isso teria influenciado a decisão da Rainha) que tentara assassinar o PM inglês. Ou seja: sua inspiração foi franca e confessadamente política e voltada para justificar a opressão sobre os escoceses. E ainda tentam lhe dar matizes de ciência! Como visava o isolamento de uma certa "índole para o mal" em relação ao restante do funcionamento mental, essa regra foi denominada "A PROVA DO BEM E DO MAL". Décadas depois, foi submetida a maiores restrições ainda e passou a ser chamada "Lei do Policial ao Lado": a irresponsabilidade seria considerada APENAS caso o IMPULSO IRRESISTÍVEL o fosse a ponto de o paciente adotar aquela conduta, mesmo que tivesse um policial ao seu lado (Material disponível na INTERNET).
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NOTA POSTERIOR: a tendência a ver "índoles más" em toda a parte costuma revelar o que vai no coração dessas mesmas pessoas. E dizer que eles se diziam cristãos!
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Hoje, a aplicação inflexível daquela regra me parece um ANACRONISMO de difícil aceitação, embora exista muita "inspiração vitoriana" entre nós. Afinal, a ESQUIZOFRENIA é a mais grave de todas as condições psiquiátricas, comprometendo gravemente, além do juízo, as funções afetivo/volitivas e mesmo as funções cognitivas em geral: atenção, inteligência, memória e outras. Conforme se pode ler no próprio laudo, apesar de saber o caráter ilícito do ATO, a capacidade do paciente de se determinar estava muito comprometida. A própria ingenuidade com que ele mesmo falou de sua PERPLEXIDADE diante de como se deixou levar por motivações que ele mesmo desconhece (até hoje), deveria ser considerada. Argumentar, por exemplo, que teria se tratado de um assalto e que, por isso e em princípio, a conduta não guardaria qualquer relação com a doença implica enrijecer e estreitar os critérios quase à "maneira vitoriana" de olhar o mundo.
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O abandono---é verdade que sua aplicação retornou, nas últimas décadas, com toda a força no mundo anglo-saxão---daquela regra somente se deu quando, em 1954, o Juiz DL Bazelon formulou, diante de um acusado (M. Durham, no distrito de Columbia-EUA) aquela que ficou conhecida por REGRA DURHAN:
"...A separação entre o bem e o mal é inadequada, uma vez que: A- não leva em conta as realidades psíquicas e os conhecimentos científicos; B- toma como referência apenas UM sintoma e, por isso, não pode ser aplicada a todas as circunstâncias ....Assim, concluímos que se deve adotar norma mais ampla: um acusado não é criminalmente responsável se sua ação ilícita foi um produto de uma enfermidade psíquica ou de uma deficiência mental." (Compreheensive Textbook of Psychiatry Freedman-Kaplan and Sadock, Baltimore, 1977). Essas palavras continuam tão aplicáveis, segundo minha compreensão!
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NOTA POSTERIOR: tenho a impressão de que estamos vivendo, especialmente nesse campo, uma certa "volta do pêndulo" em relação às décadas de 1970/80, quando a influência psicanalítica prejudicou bastante a prática das perícias forenses. Cometeram-se, naquele período, muitos exageros "compreensivos" que prejudicaram a aplicação da lei. Talvez seja uma boa hora para a ajustar novamente as nossas práticas, à luz dos conhecimentos atuais.
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Voltemos ao caso específico! Ficaram evidentes, no próprio relato dos peritos, pelo menos duas expressões de grave comprometimento da sua capacidade de julgar as situações e de se determinar, ambas decorrentes da doença de que sofre: a sua sugestionabilidade e desorganização de conduta. Em minha longa prática no HPRM, culminando com o exercício da Coordenação de Saúde do DESIPE (1985/7), examinei um paciente esquizofrênico em estado residual que lá estava sob custódia por ter tentado descontar um cheque falsificado que um desconhecido lhe dera, sob promessa de uma recompensa. Enquanto ele se dirigia ao caixa, o outro ficou do lado de fora olhando para ver a evolução das coisas. Como tudo deu errado, o falsário foi embora, e o paciente levado à delegacia. Pergunto: estava ele, naquele momento, em estado delirante? Provavelmente não. Poderíamos dizer, por isso, que sua doença não interferiu em seu julgamento e determinação? Também certamente NÃO. Vejam que o nosso paciente sequer ficou com o produto do roubo e adotou condutas tolas que o levaram a ser capturado, enquanto ou outro escapava e talvez não tenha sido capturado até hoje.
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Por fim, louvo a honestidade do paciente ao não usar antigos sintomas para justificar sua conduta e enganar peritos. Dizer, como ele o fez: "Não teve nada a ver com voz" teve a sua beleza, assim como a sua própria perplexidade diante do seu ato. Por isso, afirmo: se querem mesmo melhorar a aplicação da LEI, de maneira a que tenha um papel educativo e protetor da sociedade, aumentem seu rigor contra as SIMULAÇÕES. Essas sim, como vimos recentemente em S. Paulo---quando um simulador enganou peritos e voltou a assaltar e matar---representam um perigo para a sociedade. Já os esquizofrênicos necessitam de apoio diuturno, de maneira a não se deixarem usar. Essas são as razões pelas quais discordo frontalmente da conclusão do laudo apresentado pelos peritos, mesmo louvando também a boa qualidade de suas observações: reforçaram muito as minhas convicções.

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