quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

O impacto do pré-julgamento e o filme "A Caça"

O dinamarquês A Caça, que ganhou a Palma de Ouro em Cannes e concorre ao Oscar de filme estrangeiro, é um excelente trabalho de Thomas Vinterberg (diretor do celebrado Festa de Família, outro que trata do tema de abuso sexual infantil). É também um filme profundamente incômodo (trailer aqui), ainda mais pra quem está acostumado a ler relatos de abuso. 
Caça começa mostrando a rotina de um professor de jardim de infância, Lucas. Ele é adorado pelas crianças, principalmente por Klara, uma menina de 5 anos, filha do seu melhor amigo. 
Klara é bem solitária, e seus pais não lhe dão a devida atenção. 
Um dia, o irmão adolescente e um amigo, rindo, mostram alguns segundos de uma cena de filme pornô pra ela, e mencionam que o pênis na cena está duro como um bastão. Ela fica abalada ao ver aquilo.
Pouco depois, vemos que ela embrulha um coração de presente pra Lucas, e que, no meio de uma brincadeira com várias crianças, ela se joga sobre ele e lhe dá um beijo na boca. Lucas faz o que qualquer bom educador faria: explica pra ela que beijinho na boca, nessa idade, é só com papai e mamãe, e pergunta se ela não gostaria de dar o presente que fez pra outra pessoa. Ela se sente rejeitada. Naquela mesma tarde, ao falar amenidades com a diretora da escola, Klara diz que odeia Lucas, porque ele é tonto, feio, e tem um pênis. 

A diretora ri e responde: “Assim como seu pai e seu irmão e todos os homens.” E Klara: “É, mas o dele é levantado como um bastão”. A gente percebe que ela está repetindo as palavras que ouviu do amigo do irmão sobre o vídeo pornô, e vemos também que ela mente ao dizer que Lucas lhe deu um coração. 



O que você faria no lugar da diretora? É necessário acreditar na menina, não é? (se tem um filme em que você deve se imaginar na cabeça de cada personagem, praticar empatia, e perguntar “O que eu faria, no caso?”, é este). 
A diretora conta a Lucas o mínimo possível: não fala pra ele exatamente do que foi acusado nem por quem, o que torna qualquer chance de defesa muito difícil. Ela chama um psicólogo para entrevistar Klara. 


A menina está lacônica, não quer contar nada, como é frequente em casos de abuso. O psicólogo se precipita, após o silêncio de Klara, e pergunta, “É verdade que você viu o pipi de Lucas?” Ela balança a cabeça, dizendo que não. Ele insiste, até que ela confirma o que ele quer ouvir. 
O jardim de infância tem que notificar a polícia. A diretora afasta Lucas e pede aos pais que observem qualquer sintoma de abuso sexual nos seus filhos. A partir daí, vira uma Escola Base (um enorme caso de linchamento midiático e pré-julgamento ocorrido em São Paulo; em março o escândalo completa vinte anos). 

É revoltante, destroem a vida de Lucas. Claro que na vida real não é tão fácil. A gente não vê tudo montadinho como em A Caça, em que fica evidente que nada daquilo aconteceu.
Na vida real, casos de denúncias falsas como a do filme são raros (e neste texto falarei apenas de abuso sexual infantil, não de estupros contra pessoas adultas). 

Este site americano diz que as denúncias falsas ficam em no máximo 2%, embora alguns artigos afirmem que elas não são tão incomuns, especialmente em disputas pela custódia dos filhos. Memórias falsas podem serimplantadas sim, e, em ambientes de tensão, qualquer beijo, qualquer banho, pode ser interpretado como abuso.
Como diz Gabel, “O abuso sexual praticado contra a criança é uma das formas de maus-tratos que mais se ocultam: a criança tem medo de falar e, quando o faz, o adulto tem medo de ouvi-la”. 
A palavra da criança sempre deve ter importância, porque na maior parte das vezes, ela é tudo que se tem. Em geral não há indícios físicos nem testemunhas. Mas crianças mentem. É muito raro mentirem sobre abusos, mas também pode acontecer. (e compreender isso é totalmente diferente de pensar que toda denúncia é mentirosa).

Sem falar que o que nós entendemos por mentira não é o que a criança entende. Para a psicopedagoga Maluf, a criança de até 6 anos não consegue distinguir a mentira –- um engano intencional -– de seus jogos de faz-de-conta -- a fantasia. A realidade para uma criança é diferente do que é para um adulto.
Por isso, é um trabalho complicado aquele do psicólogx que tem que avaliar um abuso sexual infantil. O profissional tem que acreditar na vítima mesmo quando ela nega ou silencia o abuso. Ao mesmo tempo, ele não pode ter certeza que o abuso ocorreu. E nem conduzir a criança para que ela responda o que ele quer (que é o que ocorre em A Caça). 
Outra coisa complicada é... ser homem. Há poucos privilégios femininos, mas tocar e beijar uma criança sem ser vista como uma pervertida é um deles (se eu, que sou mulher, já fico cheia de dedos em encostar numa criança, imagino como deve ser pros homens).
Como entre 90% e 96% dos casos de abuso sexual infantil são cometidos por homens, quase sempre conhecidos da criança, a sociedade é ligeira em desconfiar de homens que trabalham com crianças. Em denúncias de abusos infantis, costumamos abrir mão muito rápido da presunção de inocência, um princípio básico de direitos humanos. Acreditar numa criança que denuncia abuso também é básico. 

Esses princípios não são irreconciliáveis. É preciso acreditar na vítima para se iniciar uma investigação justa. Mas também é preciso muita, muita cautela antes de tachar alguém de pedófilo. Porque, se você fosse acusadx de cometer esse crime hediondo, como acontece com Lucas no filme, você não iria querer ter o direito de ser julgado (e defendido) antes que todo mundo se voltasse contra você?


Fonte: http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/

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