sexta-feira, 11 de abril de 2014

Luiz Flávio Gomes: Corte pode anular julgamento do mensalão

Luiz Flávio Gomes: "Muitos ministros do STF -- por exemplo, Marco Aurélio e Joaquim Barbosa --, depreciam o sistema interamericano de direitos humanos, dizem que ele não vale nada; conclusões equivocadas e totalmente desatualizadas". Foto: Nelson Jr./SCO/STF
por Conceição Lemes
Em setembro de 2012, em entrevista ao Viomundo, advogado criminalista Luiz Flávio Gomes denunciou:“Um mesmo ministro do Supremo investigar e julgar é do tempo da Inquisição”.
Ele referia-se à dupla-função de Joaquim Barbosa, atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da Ação Penal 470 (AP/470), o chamado mensalão: o de investigador e o de juiz.
“Isso conflita com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos”, alertou à época. “O juiz fica psicologicamente envolvido com o que ele faz antes e aí está contaminado para atuar depois no processo.”
E, como Luiz Flávio  já previa em 2012, a maioria dos réus do mensalão foi condenada por esse dispositivo que ele considera da Idade Média.
Nós voltamos a conversar hoje sobre a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o julgamento da AP 470.
Viomundo — O STF infringiu mesmo o que recomenda a Corte Interamericana de Direitos Humanos?
Luiz Flávio Gomes – Com certeza. Entre as possíveis violações à jurisprudência do sistema interamericano de direitos humanos, o STF praticou pelo menos duas.
Uma delas: o mesmo juiz que investigou o caso, o ministro Joaquim Barbosa, presidiu o julgamento. Cumpriu dois papeis: o de investigar e o de julgar. Isso ocorria na Idade Média, no processo inquisitivo.
A outra violação: foi descumprida a garantia do duplo grau de jurisdição, tal como reconhecido no julgamento da Corte Interamericana de 2009, caso Barreto Leiva.
O senhor Barreto Leiva Barreto foi julgado diretamente pela Corte Suprema venezuelana, sem direito ao duplo grau de jurisdição. Ele levou o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que reconheceu o direito dele ao duplo grau de jurisdição.
Viomundo – O Brasil é obrigado a cumprir a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos?
Luiz Flávio Gomes – Pacta sunt servanda: os pactos devem ser cumpridos.
Nenhum país é obrigado a assinar tratados internacionais nem a reconhecer a jurisprudência do sistema interamericano. Porém, depois de assumidos, devem ser cumpridos.
O Brasil assumiu a jurisdição do sistema interamericano de direitos humanos em 1998. Está obrigado a respeitar suas decisões. A jurisprudência da Corte é tranquila no sentido do sentido de que o mesmo juiz não pode cumprir dois papeis — o investigativo e o judicial. Veja o caso Las Palmeras, da Corte Interamericana. Quanto ao duplo grau de jurisdição, veja o caso Barreto Leiva
O caso Las Palmeras foi contra a Colômbia. Lá aconteceu algo igual ao que aconteceu aqui no mensalão. Um juiz presidiu a investigação e depois participou do julgamento.
Esse caso foi para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que dissenão pode.  O magistrado que cumpre o duplo papel de “parte” (investigador) e de juiz viola a garantia do juiz imparcial. Em função disso, a Corte anulou totalmente o julgamento realizado na Colômbia.
Outro exemplo é caso AraguaiaA Corte Interamericana de Direitos Humanos mandou investigar e processar os crimes da ditadura no Brasil.
Viomundo — Na cabeça de nós, leigos, o juiz tem de ser imparcial. Na prática, não é o que vimos no julgamento da AP 470. Qual a consequência dessa parcialidade?
Luiz Flávio Gomes – A consequência da parcialidade do juiz — é o caso, por exemplo, de Joaquim Barbosa, que presidiu a investigação preliminar, ficando subjetivamente comprometido com o resultado do processo — é o descumprimento do artigo 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos, que pode levar a Corte Interamericana a anular o processo do mensalão, determinando que outro seja feito.
Durante o processamento da reclamação no Sistema Interamericano o réu continua cumprindo sua pena normalmente. Os processos hoje na Comissão estão demorando de 1 a 2 anos. O mesmo tempo se passa na Corte.
Viomundo — Na mensagem que trocamos, o senhor me disse: nós vivemos num regime político-criminal regido por um capitalismo primitivo… a Itália é outro mundo. Por favor, explique o que isso significa.
Luiz Flávio Gomes – Olhando o mundo capitalista de hoje, nos podemos distinguir, entre outros, estes três modelos:
1. Capitalismo evoluído e distributivo — Fundado na educação de qualidade para todos, boa ou excelente renda per capita, pouca desigualdade.  Estão nesse grupo Dinamarca, Suécia, Bélgica, Holanda, Alemanha, Finlândia, Islândia, Áustria, Austrália, Japão, Coreia do Sul, Cingapura, Suíça, Noruega etc.
2. O oposto é o capitalismo selvagem (no caso brasileiro, extrativista e patrimonialista) –É  marcado pela carência de educação de qualidade, baixa renda per capita e alta desigualdade. Praticamente todos os países da América Latina e África seguem esse modelo.
3. O capitalismo intermediário — É próspero, mas exageradamente concentrador: é o caso dos EUA.
No primeiro grupo, a média de assassinatos é de 1,8 para cada 100 mil pessoas. No segundo grupo, a violência é epidêmica: 10 ou mais assassinatos para cada 100 mil pessoas. O Brasil está com 27,1 para cada 100 mil). No terceiro, a média é de 3 a 9 assassinatos para cada 100 mil pessoas. Nos Estados Unidos estão com 4,7 por 100 mil.
Viomundo — Quais as diferenças punitivas entre, por exemplo, o Brasil, Estados Unidos, Dinamarca, Holanda, Noruega, Itália e Japão?
Luiz Flávio Gomes – Cada um dos três modelos de capitalismo que mencionei acima conta com seu próprio modelo político-criminal.
O capitalismo do grupo 1 prioriza a prevenção do crime e ainda conta com um eficiente império da lei — baixa impunidade.
O do grupo 2 não tem política preventiva e o império da lei é paupérrimo — altíssima taxa de impunidade. No caso do Brasil, não previne nem reprime extensamente.
O capitalismo do grupo 3 conta com sistema preventivo mas não o prioriza. Em compensação, seu sistema penal funciona razoavelmente. É o caso dos EUA.
Viomundo — Na prática, em que isso resulta?
Luiz Flávio Gomes – O grupo 1 não se caracteriza, em regra, pela crueldade das penas. São justas e muitas vezes suaves, mas certas e praticamente infalíveis.
O grupo 2 se caracteriza pelas penas duras e cruéis, mas que raramente são aplicadas.
O grupo 3 — caso dos EUA — tem penas duras e são normalmente aplicadas. Se não é o mais duro sistema penal do Ocidente, é um dos mais. Nem por isso tem as mais baixas taxas de criminalidade. Lá tem quase três vezes mais homicídios do que nos países do grupo 1.
Viomundo -O julgamento da AP 470 deve ser remetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos?
Luiz Flávio Gomes – De forma direta, a Corte não interfere nos processos que tramitam num determinado Estado membro sujeito à sua jurisdição. Isso porque  a adesão é livre e espontânea. Porém, de forma indireta, sim.
Muitos ministros do STF  – por exemplo, Marco Aurélio  e Joaquim Barbosa — depreciam a jurisdição interamericana. Dizem que ela não tem nenhum valor.
Lendo esses infelizes comentários deles, a sensação que se tem é de que a Corte ou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos não teria poderes para modificar o que foi decidido pelo STF e que as sanções dela são basicamente indenizatórias.
Nada mais equivocado do que essas conclusões, totalmente desatualizadas. São emanadas de juristas que tiveram formação jurídica legalista, sem conhecerem os progressos do direito internacional.
Continuam presos ao grande jurista vienense Kelsen, que desenvolveu o sistema jurídico legalista. Estão ultrapassados. Bastaria ver o que aconteceu com Maria da Penha, cujos direitos foram reconhecidos pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para perceberem que o mundo está mudando.
Viomundo — Como o senhor bem lembrou, há ministros do STF que desdenham da possibilidade de se levar o processo do mensalão para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, enquanto o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, diz que o julgamento seguiu à risca o que determina a Corte. E, aí?
Luiz Flávio Gomes —  O caso Barreto Leiva contra Venezuela mostra que a Corte, em sua decisão de 17 de novembro de 2009, apresentou duas surpresas. A primeira é que fez valer em toda a sua integralidade o direito ao duplo grau de jurisdição, ou seja, o direito de ser julgado duas vezes, de forma ampla e ilimitada. A segunda surpresa é que deixou claro que esse direito vale para todos os réus, inclusive os julgados pelo Tribunal máximo do país, em razão do foro especial por prerrogativa de função ou de conexão com quem desfruta dessa prerrogativa.
Esse precedente da Corte Interamericana encaixa-se como luva ao processo do mensalão, que descumpriu a jurisprudência da Corte Interamericana.
Viomundo — Na entrevista que fizemos em 2012, o senhor disse que em função do desrespeito à jurisprudiência da Corte Interamericana de Direitos Humanos o julgamento do mensalão poderia ser anulado. O que acha agora com a ação já transitada em julgado e os réus na cadeia?
Luiz Flávio Gomes – Eventual reclamação ao sistema interamericano não impede que os condenados continuem cumprindo suas sentenças. Mas é boa a chance de anulação dessas condenações em razão da falta de imparcialidade do Joaquim Barbosa, que presidiu a fase de investigação e o processo. E grande a chance de provocar um segundo julgamento, por desrespeito ao duplo grau de jurisdição.

Originalmente publicado em: Viomundo

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